Ilustração: Ricardo Machado
Ilustração: Ricardo Machado
Apocalipse era o que Marx prometia, com sua previsão de que a burguesia produziria seus próprios coveiros e só o proletariado sublevado derrotaria o capital espoliador.
Conto de fada era a chamada “curva de Kuznets”, segundo a qual o capital cumulativo e monopolista eventualmente se autocorrigiria e, para citar uma imagem fluvial ainda em uso hoje, quando as águas subissem ergueriam todos os barcos ao mesmo tempo.
Entre parênteses: o economista brasileiro Paulo Gurgel Valente, num texto que circula na internet, fez um ótimo resumo, claro e didático, do trabalho de Kuznets e da crítica de Piketty.
Piketty reconhece a importância de Kuznets, um dos primeiros economistas a recorrer a estatísticas científicas com as quais Marx (e Malthus e Ricardo e outros catastrofistas dos séculos 18 e 19) nem sonhava. Mas as conclusões de Kuznets podem ser chamadas de canções de ninar para capitalista selvagem dormir sem remorso.
Piketty perdoa o otimismo de Kuznets porque ele é um reflexo direto do otimismo da época, o período entre o fim da II Guerra Mundial, 1945 e 1975, 30 anos que na França são chamados de “les trente glorieuses”, durante os quais todos os barcos subiram juntos e subiram muito. Desde então, de acordo com o estudo das estatísticas a seu dispor (e ao dispor de todo o mundo) e as previsões de Piketty, os mitos do mercado autorregulado, da mãozinha invisível de Adam Smith e da eventual superação da desigualdade e da injustiça que virá um dia, é só ter paciência, sobrevivem nos contos de fada com final feliz que o neoliberalismo insiste em nos contar, e defende contra todas as evidências.
Um contrapeso teórico à sua tese, do qual Piketty não foge, é que o sonho – ou o pesadelo, dependendo de que lado você estaria quando viesse o cataclismo – previsto por Marx também não aconteceu. O apocalipse marxista também virou conto de fada, pelo menos na sua pretensão escatológica à redenção da humanidade no fim do capitalismo, do Estado e da História.
Piketty propõe medidas contra a desigualdade difíceis de imaginar na prática, como a taxação universal de grandes fortunas herdadas e lucro desmedido. Mas seu livro está sendo considerado tão importante, sobre distribuição de renda no século 21, quanto as teses equivocadas de Kuznets que justificavam a ganância no século 20. Resta saber se terá a mesma influência.