Foto: Luiz Munhoz/Divulgação
Flexibilidade, austeridade, precarização: essas são algumas das palavras que acompanham o cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras assalariados hoje nos setores público e privado. Há quem prefira nem usar mais o termo “trabalhador”. Esse ator estaria sendo progressivamente substituído por empreendedores, autônomos, prestadores de serviços e terceirizados, entre outras categorias e denominações. Em muitos casos, tampouco cabe seguir falando de “salário”, uma vez que o outro lado da flexibilidade e do empreendedorismo é o risco de, eventualmente, não ter o que receber no final do mês.
Outro risco, cada vez mais presente, é aquele ditado pelo fato desses empreendedores flexíveis não terem mais direitos trabalhistas e sociais. A meritocracia, supostamente, vai cuidar dos bons, e os incompetentes ficarão pelo caminho. Que mundo do trabalho é esse que estamos vivenciando neste início de século 21?
Em 1998, o sociólogo Richard Sennett escreveu o livro A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo (publicado no Brasil pela Editora Record), no qual argumenta que o ambiente de trabalho da economia do novo capitalismo, com ênfase na flexibilidade e no curto prazo, inviabiliza a experiência e narrativas coerentes sobre a própria vida por parte dos trabalhadores, o que, por sua vez, impediria a formação do caráter.
Neste novo capitalismo globalizado, não haveria lugar para coisas antiquadas como lealdade, confiança, comprometimento, colaboração e ajuda mútua. Sennett esteve em Porto Alegre no dia 24 de agosto, junto com sua esposa, a também socióloga Saskia Sassem, para participar de uma conferência do ciclo Fronteiras do Pensamento. Pelo que disse nesta conferência, esse quadro de flexibilização, dissolução do espírito de cooperação e de corrosão do caráter só se agravou de 1998 para cá.
As promessas não cumpridas da flexibilidade
O capitalismo flexível e empreendedor, escreveu Sennett em A Corrosão do Caráter, pediu às pessoas para que fossem mais ágeis, estivessem abertas a mudanças no curto prazo e assumissem riscos continuamente, dependendo cada vez menos de leis, direitos, normas e procedimentos formais. O pedido veio acompanhado de uma promessa: essa flexibilidade daria às pessoas mais liberdade para moldar suas vidas. Ao invés disso, aponta o professor da Universidade de Nova York e da London School of Economics, trouxe um estado de ansiedade permanente em quem vive do trabalho, revogação de direitos, imposição de novos controles e obrigações e ampliação dos horários de trabalho.
Esse pacote, assinala ainda Sennett, tem um custo pesado para o nosso caráter pessoal, entendido como “o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros”. “Como decidimos o que tem valor duradouro em nós numa sociedade que cultua a flexibilidade e se concentra no momento imediatista? Como se pode manter lealdade e compromisso mútuos em instituições que vivem se desfazendo ou sendo continuamente reprojetadas?” – questiona Sennett no prefácio de A Corrosão do Caráter. Pode-se aplicar essas perguntas, por exemplo, à situação vivida hoje por professores, policiais, profissionais da saúde e servidores de outros setores do serviço público do Rio Grande do Sul. Nos meses de julho e agosto, chegaram ao final do mês sem saber se iriam receber e quanto iriam receber.
Só terão essa informação no último dia útil do mês, anunciou o secretário da Fazenda, Giovani Feltes, justificando a medida por conta da crise financeira do Estado. Esses trabalhadores, sobre os quais recai a responsabilização mais direta dessa crise, são convidados a terem paciência, ficarem tranquilos e seguirem trabalhando. Retomando a formulação de Sennett, como manter lealdade e compromisso diante de tamanha falta de respeito e compromisso?
“A ideia de interdependência está desaparecendo”
Situações similares ocorrem no setor privado. Em situações de crise, as promessas de “mais liberdade para moldar suas vidas” se traduzem em uma palavra: demissão. Esse discurso, às vezes, invade as raias do cinismo, como se viu na célebre carta que o presidente do Grupo RBS, Eduardo Sirotsky Melzer, enviou aos seus “colaboradores”, no dia 4 de agosto de 2014, para anunciar 130 demissões na empresa. Ao anunciar a decisão, o executivo classificou-a como uma expressão de inovação, “coragem, energia e desapego para deixar de fazer coisas que não agregam e investir no que pode nos fazer crescer”.
Volta a pergunta de Sennett: como manter lealdade e compromisso com esse modelo de trabalho? Há algo muito errado se passando na sociedade, advertiu Sennett em sua passagem por Porto Alegre: “O novo capitalismo está dissolvendo os laços de cooperação e colaboração entre as pessoas. A ideia de interdependência está desaparecendo. A ideia de que preciso do outro para viver, de que é importante fazer parte de um grupo, tudo isso está desaparecendo”.