O mais recente livro de Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui (Editora Alfaguara, 295 págs.) deveria ser adquirido por todas as escolas brasileiras e discutido em aula com os estudantes. Trata-se de texto pungente, objetivo e doloroso, a respeito dos destinos esfacelados de Rubens Beyrodt Paiva, seu pai, e de Eunice Paiva, sua mãe. Rubens Paiva foi deputado federal pelo antigo PTB, cassado pelo golpe de 64. Apesar da perseguição e de todas as dificuldades derivadas, ele se atreveu a ajudar ativistas da esquerda, apoiando a resistência como cidadão. Rubens Paiva não pegou em armas e não se somou à militância clandestina. Engenheiro civil, um dos construtores de Brasília, se opunha à ditadura, dever de qualquer democrata. Poderia ter se dedicado a ganhar dinheiro e se voltado à vida privada, para o cuidado dos seus cinco filhos; ou se exilado até que o regime apodrecesse. Não. Escolheu fazer o que sua consciência moral lhe obrigava.
Foto: Acervo Família Rubens Paiva
No feriado do dia 20 de janeiro de 1970, a casa da família Paiva foi invadida por seis agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) armados com metralhadoras. Paiva e Eunice estavam em trajes de banho e se preparavam para ir à praia. Disseram que levariam Rubens para prestar depoimento, coisa de rotina. Ele, então, pediu licença para se vestir. Colocou terno e gravata e se deslocou, acompanhado pelos militares, em seu carro particular, um Opel vermelho, até o comando da III Zona Aérea na Avenida General Justo. Posteriormente, foi conduzido ao DOI, no 1º Batalhão de Polícia do Exército. Nunca mais se soube dele ou de seus restos mortais.
Em 22 de janeiro, os jornais do Rio publicaram a notícia de que Rubens Paiva havia sido “resgatado” por um comando subversivo. Manchete de O Globo: “Terror liberta subversivo de um carro dos federais”. Manchete do Jornal do Brasil: “Terroristas metralham automóvel da polícia e resgatam subversivo”. Aquela era uma época em que os desaparecimentos eram maquiados e em que a mentira transitava pelos jornais a serviço da ditadura com desfaçatez. A notícia significava que Paiva estava morto. O fato é que, por muitos anos, não se ofereceu à família sequer esta certeza. Ao invés do atestado de óbito, só obtido em 1996, novas mentiras. Até que tudo veio à tona pelo relato de testemunhas, tanto por ex-presos como por agentes da repressão.
“Aquela era uma época em que os desaparecimentos eram maquiados e em que a mentira transitava pelos jornais a serviço da ditadura com desfaçatez”
Paiva morreu em decorrência dos suplícios a que foi submetido na tortura. Seu corpo for esquartejado e enterrado na areia e depois desenterrado e lançado ao mar. José Antônio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos, Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochendorf e Souza, foram acusados pelo Ministério Público Federal como os responsáveis pelo assassinato de Paiva (homicídio doloso qualificado), por ocultação de cadáver, fraude processual e formação de quadrilha armada. Eles teriam agido com outros militares já falecidos, entre eles Francisco Demiurgo Santos Cardoso, Paulo Malhães, Freddie Perdigão Pereira, Antônio Fernando Hughes de Carvalho, Syseno Sarmento, José Luiz Coelho Netto, João Paulo Moreira Burnier, Ney Fernandes Antunes e Ney Mendes. A denúncia que foi aceita pela Justiça Federal em 26 de maio de 2014. O ministro Teori Zavascki, do STF, entretanto, suspendeu a ação penal, entendendo que o processo seria incompatível com a análise feita pelo Tribunal a respeito da aplicação da Lei da Anistia. O caso não tem data para ir a plenário.
Eunice Paiva, a mulher que segurou essa barra sozinha, foi cursar Direito depois do desaparecimento do marido, tendo desenvolvido, por muitos anos, intensa e qualificada atividade como advogada. Atuou em várias frentes, assumindo com dedicação a causa indígena e se tornando uma referência internacional no tema.
Nunca chorou na frente das câmaras e ensinou os filhos a não permitir que os tratassem como “coitados”. A família Paiva seguiria com o olhar altivo. Hoje, com 85 anos, Eunice vive com Alzheimer. Uma doença pela qual o cérebro vai desaparecendo com as pessoas. A descrição das diferentes fases da doença, o drama, o amor, o reconhecimento, tudo está lá, no texto forte e justo de Marcelo. Lê-lo, comentá-lo, distribui-lo, é forma de manter Rubens e Eunice na memória do país, como exemplos, como referências de coragem e cidadania. É o mínimo que lhe devemos.
* Jornalista, sociólogo e professor do IPA.
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