OPINIÃO

Por uma política de chance justa

Publicado em 14 de dezembro de 2015

Mais de cem cidades dos EUA adotaram nos últimos anos uma política pública conhecida como ban-the-box and fair chance po­licies (algo como: banir a caixa, por políticas de chance justa). A “caixa” é uma referência a uma questão recorrente em formulá­rios de emprego onde se pergunta ao candidato se ele possui antecedentes criminais. Em caso positivo, o pretendente deve assinalar um X no pequeno quadrado (litlle box) ao lado da pergunta. O governo federal e 19 estados já terminaram com esse tipo de questão em processos de contratação, e sete estados americanos baniram o tema também em processos de contratação pela iniciativa privada (relação completa em http://migre.me/sfiFJ).

O movimento em favor de políticas de emprego fundadas em “chance justa” começou há 15 anos, em São Fracisco e Boston, e tem se alastrado pelos EUA. A ideia, que conta com o apoio do governo Obama, é a de assegurar que as pessoas sejam selecionadas prioritariamente por seus méritos. No âmbito federal, a Comissão pela Igualdade de Oportunidades de Emprego dos EUA (U.S. Equal Employment Opportunity Commission) considerou as políticas de chance justa como a “melhor prática” em 2012 e, em bre­ve, tudo indica que será ilegal em todo o país que alguém seja barrado em um emprego pelo fato de já ter, por exemplo, cumprido pena de prisão. Um resultado que terá efeitos extraordinários em um país onde 70 milhões de pessoas possuem registros criminais, a grande maio­ria delas formada por afrodescendentes e latinos (atualmente nos EUA, um em cada seis homens negros está preso. Nem o regime do apartheid na África do Sul produziu tal taxa de prisões de pessoas negras).

Em todo o mundo democrático, há exemplos de iniciativas que procuram enfrentar o estigma social sobre ex-presidiários ‒ sentença perpétua e extra­-judicial, porque é evidente que se trata de fenômeno produtor de mais crime e violência. Assim, além da injustiça a reparar – motivo que já seria suficiente – há uma consequência extremamente danosa a evitar: a reincidência criminal.

“No Brasil, os egressos do sistema penitenciário seguem condenados ao inferno da marginalização resultante das múltiplas recusas de emprego. Ilegalmente, membros das polícias informam aos empregadores sobre eventuais antecedentes criminais dos candidatos a vagas no mercado”

Há muitas soluções possíveis para se reduzir o estigma e seus efeitos nefastos. Na Holanda, por exemplo, quando alguém se inscreve para uma vaga no mercado, os empregadores podem solicitar a um serviço do gover­no se há ou não algum óbice para que aquela pessoa seja designada para a função. O serviço não irá informar se o pretendente tem antecedentes criminais. Nenhuma informação que diga respeito a eventuais processos ou condenações será oferecida. Entretanto, se o pretendente tiver sido conde­nado por maus-tratos a uma criança, por exemplo, e desejar um emprego em uma creche, o serviço informará ao empregador que, para aquela função, há óbice. Esta não seria a informação caso a vaga fosse de outra natureza. Assim, a legislação holandesa encontrou uma forma criativa e simples de preservar, ao mesmo tempo, os direitos da sociedade e do egresso (Uma boa descrição pode ser encontrada em Judicial Rehabilitation in the Netherlands: Balancing between safety and privacy. Disponível aqui).

No Brasil, os egressos do sistema penitenciário seguem condenados ao inferno da marginalização resultante das múltiplas recusas de emprego. Ilegalmente, membros das polícias informam aos empregadores sobre even­tuais antecedentes criminais dos candidatos a vagas no mercado. O proce­dimento não deixa de revelar uma hipocrisia muito comum. Pode-se imagi­nar, por exemplo, quantas milhares de chances de emprego foram negadas pelas grandes empreiteiras brasileiras cujos proprietários e altos executivos estão ou foram presos pela Lava-Jato. O mesmo vale para os empresários que discriminam pes­soas que cumpriram penas, enquanto sonegam impostos, corrompem autoridades públicas, par­ticipam de fraudes e burlam licitações, entre ou­tros crimes pelos quais normalmente nunca são responsabilizados.

Haverá alguém no Congresso preocupado com este tema? E entre os nossos empresários, alguém se habilita? Os interessados poderiam conferir a experiência da Homeboy (gíria para “membro de gang”), uma empresa americana com orçamento de 14 milhões de dólares e com 300 empregados. O detalhe: todos os membros da empresa, dos estagiários ao presidente, são ex-presidiários. Tudo começou em Los Angeles com um padre de nome Gregory Boyle, que queria ajudar egressos do sistema. As dificuldades eram tantas que ele resolveu abrir o negócio que começou com uma simples padaria. Hoje, a empresa é dirigida por Bruce Karatz, ex­-executivo de uma construtora condenado por fraude. A Homeboy tem um restaurante, uma gráfica, uma clínica de remoção de tatuagens e a própria marca de alimentos, cujas embalagens vêm com o slogan “empregos, não ca­deia” (matéria com mais informações aqui). No RS, sei de um empresário no interior que emprega vários ex-presidiários. Há alguns anos, me escreveu, aterrorizado, contando que policiais o perseguiam porque “quem ajuda vagabundo, vagabundo é”. Assim caminha a humanidade.

* Jornalista, sociólogo e professor do IPA.
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