Foto: Marcelo Camargo/ABr
Em abril deste ano, Cedenir de Oliveira, um dos principais dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Via Campesina no Rio Grande do Sul, advertiu sobre os riscos que a tentativa de afastar a presidenta Dilma Rousseff, sem a existência de um crime de responsabilidade, que justificasse seu impeachment, traria para a democracia brasileira. O líder do MST previu então que a aprovação da abertura do processo de impeachment na Câmara e no Senado só agravaria a crise política e colocaria todo o país em uma situação de exceção, fora das regras do Estado Democrático de Direito. O nome disso, assinalou, é golpe constitucional, sem que exista nenhum argumento jurídico para justificar o impeachment. Cedenir de Oliveira advertiu para os riscos de “colocar-se fora da Constituição”:
“Na medida em que as regras democráticas e os acordos estabelecidos a partir da Constituição de 1988 são rasgados, tudo vale. Se isso acontecer, os autores dessa ruptura também poderão sofrerações não democráticas, pois colocaram a si e a todo país para fora do Estado Democrático de Direito. Aqueles que rasgarem a Constituição não dormirão em paz”.
As previsões do dirigente do MST se confirmaram quase que integralmente. A sessão que aprovou a abertura do processo de impeachment na Câmara dos Deputados funcionou como um choque de realidade para o país, que pode ver, em carne e osso, do que o Parlamento do país é feito. Durante dias, discutiu-se mais os votos dos parlamentares e suas dedicatórias esdrúxulas do que o suposto crime de responsabilidade que teria sido cometido pela presidenta Dilma. A farsa se repetiu no Senado e quando Michel Temer assumiu a presidência, o fez destituído da legitimidade que caracteriza uma democracia. Nenhuma sutileza: Temer simplesmente substituiu todo o ministério de Dilma e colocou em seu lugar aqueles que foram derrotados nas eleições presidenciais de 2014. Uma troca não apenas de nomes, mas também de programa de governo. Tudo isso longe do voto popular.
Neste período, como previu o dirigente do MST, a crise política se agravou e os protestos nas ruas são diários. Além de não indicar nenhuma mulher para o primeiro escalão, de extinguir ministérios como o da Cultura e do Desenvolvimento Agrário, Michel Temer e seus aliados anunciam um pacote de retirada de direitos sociais e trabalhistas. Além disso, vários dos que assumiram o comando do país são réus e indiciados na Lava Jato. Essa combinação de falta de legitimidade política com retirada de direitos e vontade expressa de interromper as investigações sobre crimes de corrupção foram um caldo de cultura explosivo. As regras democráticas foram colocadas de lado por Temer e seus aliados que apostam na lógica do fato consumado para efetivar um projeto que não foi aprovado pelo voto popular.
Clima de violência e intolerância
Essa violência não afronta apenas a Constituição, o que já não seria pouco, mas também um conjunto de normas que regula a vida em sociedade. Os defensores da ditadura, da tortura, de posturas racistas e intolerantes saíram do armário e manifestam-se à vontade em crescentes espaços midiáticos contra a “turma dos direitos humanos”. Referência central destes grupos, o deputado Jair Bolsonaro é tratado como um “mito” por eles, inclusive quando se dirige à deputada federal dizendo que ela “nem merece ser estuprada”. O clima de violência e intolerância política é explícito e se manifesta todos os dias.
O último grande ciclo de autoritarismo e violência política no Brasil, a ditadura que se seguiu ao golpe de 1964, não foi encerrado oficialmente. Muitos crimes foram varridos para debaixo do tapete ou mantidos em gavetas até hoje longe dos olhos da sociedade. Muitos desses fantasmas estão sendo convocados a nos assombrar mais uma vez, com um discurso de ódio e intolerância. O ambiente é propício para o retorno dessas assombrações. Como advertiu Cedenir de Oliveira, quando nos colocamos fora da Constituição, tudo é permitido.
Liderança de um gângster
Marcelo Neves, professor de Direito Público na Universidade de Brasília e um dos principais constitucionalistas do país, definiu assim a situação que estamos vivendo em um artigoonde denuncia que uma “conspiração midiático-parlamentar-judicial trama golpe contra a presidenta, originalmente sob a liderança de um gângster”: “Tudo isso é a expressão de uma conspiração protagonizada por organizações empresariais midiáticas corruptamente parciais, por um Parlamento dominado por uma cleptocracia, um Ministério Público ao mesmo tempo parcial e anfíbio, e um Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, não apenas acovardado, mas sobretudo politicamente capturado por um projeto golpista liderado em sua origem por um gângster, ainda solto e, portanto, capaz de liderar os seus cúmplices e manipular o processo”.