Os governantes, e parte expressiva dos ocupantes dos cargos públicos – incluído o tipo mais vulgar de político (à esquerda e à direita), atraído pelo jogo do toma-lá-dá-cá – tratam, em regra, de assegurar seus próprios privilégios e se movem em meio a criativas estratégias corporativas e a persistentes golpes contra o erário
Na preparação de um programa para a webradio do Tribunal de Contas do Estado, sugeri que fizéssemos uma enquete, ouvindo pessoas a respeito do significado da expressão “República”. Duas das nossas estagiárias foram, então, às ruas, no centro de Porto Alegre, perguntando: “Em sua opinião, o que significa República?”. Houve quem dissesse coisas como: “eu não voto aqui, por isso não vou responder” ou “essa aula eu faltei, sabe?”. O que se observou é que os transeuntes abordados não tinham sequer uma noção a respeito do tema. Penso que deveríamos prestar mais atenção a essa lacuna.
Foto: Marcelo Camargo/ ABr
Possivelmente, a ausência da representação conceitual traduza, aqui, uma falta real. O Brasil, embora seja constitucionalmente uma República, não possui estrutura política que mereça esse nome. Vivemos a paradoxal mistura de um ordenamento jurídico republicano ao lado de uma cultura e de uma política profundamente patrimonialistas.
A ideia forte da República, da coisa que é de todos (res publica), se realiza na igualdade formal da cidadania, efetivando um espaço para a ação dos sujeitos políticos orientado pela preservação do interesse público. Por isso, se fala em “conduta republicana” quando se quer afirmar a vigência de critérios impessoais que assegurem direitos e deveres independentemente das origens sociais das pessoas, do seu sexo, etnia, religião, orientação sexual ou qualquer outra variável. Em uma República, ministros e secretários de Estado são escolhidos pela capacidade de serem bons gestores, não porque são amigos ou parentes do governante ou porque suas nomeações sirvam para a barganha de votos no Parlamento. Em uma República, os recursos são administrados tendo em conta os interesses maiores da Nação, não em atenção a demandas de grupos que desejam impor seus interesses particulares como preponderantes ou mesmo como os únicos interesses legítimos. República é também o sistema em que se percebe claramente que a fila é uma instituição justa e que a pergunta “sabe com quem está falando?” identifica sempre um crápula.
Assinale-se que o ponto de partida para a busca do interesse público é o respeito à lei (ponto de partida, porque há situações excepcionais que devem ser avaliadas para além do império da norma). Por isso, uma República exige aquilo que os latinos chamavam de consensus iuris, um determinado consenso em torno das regras fixadas pelo Direito.
Muito bem, o que ocorre é que o Brasil não viveu qualquer processo equivalente ao iluminismo. As ideias vencedoras no processo de Ilustração europeu nos foram trazidas como plantas exóticas. No mundo real de nossa formação histórica e social, o Brasil foi um apavorante breu de contornos marcados pelo preconceito e pela superstição, por um lado, e pela violência e pela exclusão social, por outro. O desprezo pelo povo, o racismo, a misoginia e a homofobia são fenômenos derivados dos privilégios assegurados desde sempre pelo Estado brasileiro aos ricos, brancos, homens e heterossexuais.
Essa turma se acostumou a curvar governos. Os governantes, e parte expressiva dos ocupantes dos cargos públicos – incluído o tipo mais vulgar de político (à esquerda e à direita), atraído pelo jogo do toma-lá-dá-cá – tratam, em regra, de assegurar seus próprios privilégios e se movem em meio a criativas estratégias corporativas e a persistentes golpes contra o erário.
Geddel Vieira, particular amigo de Michel Temer, entendeu que poderia valer-se de sua posição no governo para tratar de seus interesses imobiliários. Comprador de um apartamento de luxo em Salvador, pressionou o ex-ministro da Cultura para reverter parecer do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que havia embargado a obra concebida para assegurar aos seus moradores magnífica vista da Baía de Todos os Santos. O próprio Temer teria se envolvido nas pressões. A crise trouxe para o centro da República brasileira o empreendimento chamado “La Vue Ladeira da Barra”. “La Vue” significa “A vista”. A denominação em francês destaca o caráter exclusivo do projeto, reservado a pessoas “especiais” que não falam francês, mas que apreciam viagens a Paris pagas pela “Viúva” e que mantêm com grandes empresários relações, digamos, íntimas.
É preciso, em síntese, construir a República no Brasil. Ela está esculpida em nossos mandamentos constitucionais, mas isso é a moldura de um quadro que nunca foi propriamente elaborado. Nesse processo, deve-se afirmar uma cultura em tudo oposta às tradições monárquicas, o que significa também estimular critérios meritocráticos. Chega de incompetentes ocupando funções públicas sem a menor condição para tanto, basta de “palácios” e “cortes” como denominação de órgãos públicos; abaixo os “reis” e “rainhas” criados pela mídia; pelo fim dos “nobres” saudados em enfadonhos discursos e pelo fim dos discursos enfadonhos. Na vista da República não há paisagens exclusivas, nem jeitinhos, nem espaços reservados para autoridades, ingressos VIP ou auxílios-moradia.