OPINIÃO

O sábio que Sergio Moro pretendia censurar

Por Moisés Mendes / Publicado em 28 de março de 2017

 

O sábio que Sergio Moro pretendia censurar

Foto: Verbena Editora / Divulgação

Foto: Verbena Editora / Divulgação

O juiz Sergio Moro não reage com naturalidade quando se sente contrariado. Em outubro do ano passado, o juiz de Curitiba incomodou-se com um artigo que o criticava, publicado na Folha de São Paulo, e fez o que muita gente faz.

Escreveu para o jornal e reclamou. Mas fez também o que uma minoria insegura faz. Sugeriu que o autor do artigo fosse censurado pela Folha, por considerar que o texto era panfletário e tinha conteúdo partidário, entre outros defeitos.

O autor do texto acusara Moro de “intolerância moralista”. O artigo dizia: “A história tem muitos exemplos de justiceiros messiânicos como o juiz Sergio Moro e seus sequazes da Promotoria Pública”.

O juiz devolveu, na carta ao jornal: “Embora críticas a qualquer autoridade pública sejam bem-vindas e ainda que seja importante manter um ambiente pluralista, a publicação de opiniões panfletárias-partidárias e que veiculam somente preconceito e rancor, sem qualquer base factual, deveria ser evitada, ainda mais por jornais com a tradição e a história da Folha”. Evitada como?

O juiz não sabia (o que é grave para quem contesta quem o critica) que o autor do artigo ajudou e continua ajudando a Folha a fazer história. O ‘panfletário’ é integrante do conselho editorial do jornal e um de seus principais articulistas há quatro décadas.

Pois agora a ignorância do juiz Moro poderá ser sanada, porque seu alvo faz história pelo país e merece um livro que conte sua trajetória. Chega amanhã às livrarias Um Aprendiz de Quixote: Memórias de Arruá (Verbena Editora), com as memórias do físico, engenheiro e pensador Rogério Cerqueira Leite.

Cerqueira Leite, o ‘rancoroso’ que acionou o mecanismo autoritário do juiz de Curitiba, é um dos grandes brasileiros do século 20. É cientista respeitado, contribuiu para a resistência à ditadura, defende a democracia em sua plenitude, faz e reflete sobre ciência, universidade, ambiente e as questões essenciais do humanismo. Desde o começo das manobras da direita, fez campanha contra o golpe de agosto.

Moro deveria conhecê-lo, antes de atacá-lo por suas discordâncias em relação à seletividade da Lava-Jato. Não se trata de desinformação, mas de ignorância mesmo. Um juiz não pode dizer que desconhece Rogério Cerqueira Leite.

A Folha trouxe na segunda-feira um breve resumo dos feitos do cientista, destacando um ponto: ele é um dos raros oráculos brasileiros que junta ciência e humanidades, sempre fazendo uma abordagem sociológica e literária dos temas que o inspiram.

Cerqueira Leite criou, nos anos 80, uma das loucuras nacionais, o Laboratório de Luz Síncrotron, em Campinas, que atua em várias frentes da pesquisa científica e é considerado o similar brasileiro dos aceleradores de partículas da Europa.

Mas ele não é apenas um professor pardal metido em discussões sobre energia nuclear, combustíveis fosseis (que abomina) e fontes alternativas de energia, como professor da Universidade de Campinas.

É um provocador, um polemizador, um intelectual ativo no debate das grandes controvérsias. Como fez agora ao provocar Sergio Moro e obter como reposta uma sugestão de que deveria ser eliminado do quadro de colaboradores da Folha.

No artigo que contrariou o juiz, Cerqueira fez referência aos embates de ideias de tempos medievais e alertou Moro para o que aconteceu com Girolamo Savonarola, o padre que desafiou a Igreja e foi queimado vivo em Roma.

O cientista escreveu que, depois da caçada a Lula, o juiz poderia ser abandonado pelos que sustentam sua atuação na Lava-Jato: “Cuidado, Moro, o destino dos moralistas fanáticos é a fogueira. Só vai vosmecê sobreviver enquanto Lula e o PT estiverem vivos e atuantes”.

O juiz levou tão a sério a ameaça da fogueira que, na resposta à Folha, lamentou o fato de o cientista “chegar a sugerir atos de violência contra o ora magistrado”.

Cerqueira teve de escrever de novo à Folha, em carta à seção do leitor, para esclarecer e ironizar, num texto curto e brilhante. Eis um trecho: “O fogo a que me refiro é o fogo da história. Intelectos condicionados por princípios de intolerância não percebem a diferença entre metáforas e ações concretas”.

É como se estivesse falando com uma criança. Mas Sergio Moro, o concreto, deve encontrar tempo para ler o livro deste senhor de 85 anos. Quem sabe se arrependa do dia em que teve a ideia de que seria possível censurar o pensamento de um dos últimos sábios brasileiros.

Peço desculpas por tirar o prazer da surpresa, mas a própria Folha esclarece, ao destacar que Cerqueira Leite tem vocação para a encrenca, que o arruá do subtítulo do livro quer dizer arisco, bravio, indócil e brigão. Com quem um juiz previsível, cartesiano, esquemático e simplório foi se meter.

Moisés Mendes | Jornalista, autor do livro Todos querem ser Mujica – Crônica da Crise (Diadorim Editora, 154 páginas).

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