Foto: reprodução Web
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Poucos no Brasil já ouviram falar no professor Sérgio Henrique Ferreira. Ele foi um médico e farmacologista de Ribeirão Preto (faleceu, aos 81 anos, ano passado) que descobriu as possibilidades da Bradicinina, um peptídeo extraído do veneno da Jararaca-da-mata (Bothrops jararaca), para o tratamento da hipertensão. A descoberta deu origem a um medicamento, o Captopril, usado em todo o mundo, com o qual a indústria farmacêutica fatura bilhões de dólares todos os anos.
A hipertensão é uma grave doença degenerativa que costuma produzir acidentes vasculares cerebrais, infartos e insuficiência cardíaca. O controle medicamentoso da doença tem salvo a vida de milhões de pessoas, o que assinala mais uma das grandes contribuições que o conhecimento científico tem oferecido à humanidade. O detalhe, no caso, é que a descoberta do professor Ferreira, realizada nos anos 1960, nunca foi assumida pela indústria nacional e a patente do Captopril terminou sendo efetuada por um laboratório norte-americano.
O desprezo pela ciência entre nós, a falta de incentivos e de uma política pública elementar que garanta financiamento para a pesquisa em áreas vitais já comprometem largamente nosso futuro como nação. No caso do Captopril, apenas o faturamento do laboratório americano com o remédio já possibilitaria uma revolução na pesquisa brasileira, assegurando recursos básicos hoje inexistentes. O que ocorreu, em síntese, é que os americanos ficaram com os dólares e nós, com a jararaca.
Vivemos em um país onde não existe a profissão de cientista. Para Suzana Herculano-Houzel, neurocientista carioca, atualmente trabalhando na Universidade Vanderbilt (EUA), esse detalhe atrasa o desenvolvimento tecnológico do Brasil. Aqui, quem faz pesquisa é professor universitário e aluno de pós-graduação. Os primeiros, como regra, passam a maior parte do seu tempo envolvidos com as aulas, com as demandas de seus alunos e com relatórios, reuniões etc. “Nas horas vagas, tentam fazer pesquisa”, diz ela. Pelas regras acadêmicas vigentes, a maior parte desse esforço é canalizada para a publicação de artigos científicos onde a quantidade pesa bem mais do que a qualidade e a relevância dos trabalhos. As bolsas de mestrado e doutorado, por seu turno, são distribuídas para um pequeno grupo de estudantes e seus valores são tão pequenos que ninguém se sustenta com elas. Assim, ao invés de jovens pesquisadores em tempo integral, temos alunos de pós-graduação sem tempo para manter a leitura acadêmica em dia.
Cientistas brasileiros, muitos deles disputados por universidades estrangeiras, possuem enormes dificuldades para acesso a insumos. Qualquer compra, especialmente quando a importação é necessária, se transforma em um labirinto burocrático, mesmo quando há recursos. Faltam laboratórios, salas adequadas de trabalho, bibliotecas atualizadas, o que fez com que o biólogo Sidarta Ribeiro, um dos nossos mais influentes pesquisadores, tenha afirmado recentemente que “fazer ciência no Brasil é surreal”.
O financiamento para o desenvolvimento científico no Brasil havia tido uma pequena melhora no período Lula – nada que pudesse expressar uma política pública consistente, mas as coisas pioraram no governo Dilma. A arrecadação total do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) foi reduzida de R$ 4,5 bilhões em 2013, para R$ 3,2 bilhões em 2014. Com o governo Temer e com o tamanho dos déficits orçamentários da União e de boa parte dos estados, a situação irá se agravar para a ciência feita no Brasil. Provavelmente, irá se agravar muito. Sem recursos, as agências de fomento suspendem seus editais e atrasam o pagamento de quase todos os projetos.
O Brasil vem insistindo em opções equivocadas também por desprezar o conhecimento científico. Neste contexto, se torna mais simples entender porque investimos tanto nas possibilidades do pré-sal, insistindo na matriz energética tradicional do petróleo, ou em Belo Monte, desconsiderando os custos ambientais e sociais do megaprojeto, sem desenvolver, até hoje, uma política pública que viabilizasse o aproveitamento efetivo das extraordinárias possibilidades de energia solar e eólica, para citar apenas dois exemplos simples. É claro que os megaprojetos são mais “mobilizadores” também porque agregam extraordinárias possibilidades de corrupção. O fato é que se tivéssemos uma consciência científica desenvolvida, teríamos outras demandas e, certamente, outro tipo de governantes.
No governo Temer, o atual ministro da Ciência e Tecnologia é o senhor Gilberto Kassab, citado na Lava Jato como beneficiário de milhões em propina. Seu apelido nas planilhas da Odebrecht seria “Kafta”. Antes dele, a presidente Dilma nomeou para a mesma posição o deputado Celso Pansera (PMDB-RJ), acusado pelo doleiro Alberto Youssef de ser “pau mandado” do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, atualmente recolhido em Curitiba. Esses fatos já seriam suficientes para se compreender a importância que nossos governantes oferecem à Ciência.
O buraco, entretanto, é mais embaixo. Se começamos a cavar, encontramos os fenômenos conexos do anti-intelectualismo e do irracionalismo; o apreço pela superstição e pelo dogma religioso; o charlatanismo e a demagogia; a dificuldade de leitura, de concentração e de pensamento.