Foto: Reprodução TV Globo
A imagem do médico estuprador Roger Abdelmassih com aquele capuz medieval, indo e voltando de casa para a cadeia e da cadeia para algum hospital, é o retrato do Brasil sinistro que esconde a cara. Aquela imagem é o clichê do horror e da impunidade.
A Justiça não sabe o que fazer com Abdelmassih, assim como não sabe o que faz com os políticos corruptos da direita. É provável, por mais improvável que pareça, que o Supremo também não saiba o que fazer com o deputado Jair Bolsonaro, processado pelos ataques à deputada Maria do Rosário, que significam agressões a todas as mulheres.
Há sete anos, Abdelmassih foi condenado a 278 anos de cadeia pelo estupro de 37 pacientes. Depois, a pena foi reduzida para 181 anos, 11 meses e 12 dias. A Justiça é detalhista até nos dias. Mas todos sabemos que isso não significa nada.
Trezentos ou cem anos não alteram a situação, porque a pena máxima de cadeia é de 30 anos. E ele não cumprirá nada, pois anda dos hospitais para casa e de casa para os hospitais. Não cumpriria nem se a pena fosse de 181 horas.
A Justiça aceita qualquer pretexto para que Abdelmassih não fique preso. Gilmar Mendes o soltou e ele fugiu para o Paraguai. Voltou e agora passeia. O médico é considerado um doente que merece o privilégio da internação em hospitais privados. Assim como aceita os pretextos do violentador, a Justiça pode arranjar pretextos (preparem-se) para livrar a cara de Jair Bolsonaro.
Abdelmassih estuprou pacientes que deveriam estar sob seus cuidados. Bolsonaro disse, como ameaça de macho impune e com foro privilegiado, que só não estupraria uma colega, a deputada Maria do Rosário, porque ela não merecia.
As frases de Bolsonaro são mais imundas, mas não vou repeti-las aqui. Bolsonaro disse claramente, em discurso na Câmara e depois em entrevista a Zero Hora, que escolhe quem estuprar.
O deputado e agora réu já elogiou torturadores e fez declarações racistas e homofóbicas. Os homens do Congresso não enfrentam Bolsonaro. Porque prevalece o espírito de corpo do machario, o compadrio e o medo. O que os homens têm mesmo é medo de Bolsonaro.
Mas o Supremo, presidido por uma mulher, não pode temer um homem que se assume como aberração. Bolsonaro é processado pelo Supremo por apologia ao crime do estupro e por injúria. O sujeito que se autoproclama violentador, como se isso fosse uma virtude, vive num país que registra 10 estupros coletivos por dia, segundo o Ministério da Saúde. A violência contra a mulher é cada vez mais uma ação coletiva articulada.
Os estupros individuais chegam a 50 mil por ano, sem contar os que não são notificados, além das agressões, das ameaças, das mutilações e das mortes. O Ministério Público do Trabalho apurou que caíram os processos por assédio e violência sexual nos últimos anos por causa da crise. As mulheres pobres, as maiores vítimas, temem enfrentar o assediador e perder o emprego.
Bolsonaro age nas sombras desse cenário como candidato à presidência da República, com apoio não só do Brasil dos pobres e ignorantes, como muitos pensam, mas também de uma classe média com ensino superior e alta renda e até de jornalistas. Ele fortaleceu seu currículo com a possibilidade real de competir como nome forte dessa gente ‘esclarecida’.
Mesmo que converse até com investidores estrangeiros e seja levado a sério por uma certa imprensa, não dá para acreditar que o Brasil do golpe possa cometer o desvario de eleger um Bolsonaro.
Só que esse Bolsonaro, às vésperas de ser julgado pelo Supremo, não é mais o Bolsonaro que virou réu em junho do ano passado. É um Bolsonaro empoderado. Já foi condenado a indenizar Maria do Rosário em R$ 10 mil em ação cível por danos morais no STJ. Mas cresceu nas pesquisas.
O Brasil não pode ficar desatento a esse julgamento. Se o Supremo absolver Bolsonaro, o Judiciário brasileiro nunca mais será o mesmo. A Justiça poupa corruptos da direita. Liberta tucanos. Faz vista grossa para desmandos de amigos de juízes, fabricantes de amianto, grileiros e destruidores de florestas. Mas terá chegado à beira do abismo se anistiar Bolsonaro.
O Supremo presidido por uma mulher não pode transmitir ao país a sensação de que, além de não enfrentar os golpistas, também não enfrenta um sujeito que tem como credencial a soberba dos estupradores impunes.
O Supremo terá de condenar Bolsonaro, ou estará anistiando, por antecipação, todos os que, inspirados no macho-mito do fascismo, se acharem autorizados a ameaçar e violentar mulheres. O Supremo não pode se transformar numa aberração maior do que Bolsonaro.