Ilustração: Rafael Sica
Ilustração: Rafael Sica
Ninguém nunca imaginou que havia uma segunda carta para Dom Manoel. Então imagino eu.
Foi assim: na corte de Lisboa, todos tinham em conta que Pero Vaz de Caminha era demasiado otimista. Então acharam por bem enviar junto, disfarçado de simples marujo e sem ninguém saber, um cético. A ele caberia a missão de uma carta realista. O avesso da outra. E assim, após o desembarque e a primeira missa, escreveu o cético que era também visionário. Não qualquer um: esse antevia o futuro até quase 600 anos.
Ao contrário do Pedro Vaz de Caminha, que adorava se espichar no entusiasmo, o cético era fã da síntese. A carta era quase um bilhete. Eis:
A terra é boa e nela em se plantando, tudo dá. Mas depois de dar, vão exaurir o solo com sucessivas monoculturas e logo terão que pôr veneno nas pragas. No início vão vender por pencas, molhos e cachos. Depois descobrirão que vender a quilo dá mais lucro porque dá pra roubar no peso, e por pencas, molhos e cachos, não.
A medir-se de horizonte a horizonte, um após o outro, a terra é gigantesca. E a não ser os poucos nativos, outros donos não tem. Nem os nativos possuem documento nenhum. Assim a terra poderá ser repartida entre todos que aqui aportarem, sempre sobrando mais e mais terras, tão imensa é.
Dividida em lotes e sesmarias, suficiente será para abrigar milhares de pequenas capitanias hereditárias. Porém os capitães terão tanto olho grande que as capitanias serão poucas, e a hereditariedade ira se apossar de tudo para todo o sempre.
Sob a terra, há riquezas sem-fim: ouro, prata, ferro, e bauxita, que é reciclável como alumínio. Há pedras preciosas de todas as cores e valores, o que vai gerar grande variedade de ladrões de joias.
Por haver matéria-prima em abundância, haverá ciclos de prosperidade: da cana, do café, da madeira. Em contraste com tanta fartura, poucos serão os fartos. Os capitalistas de acá serão piores que os de lá e de além.
Sobre a terra, haverá disputas e o reino vai primeiro virar império e em seguida república. Na república, a terra será estragada por empresas e a democracia derrotada pela corrupção, que implantada sempre dará.
Desta terra que agora piso, sinais de esperança irão desaparecer, e dezenas e dezenas de partidos aproveitadores irão florescer, e será só o que desta terra brotará.
(A carta nunca chegou ao destinatário. O ceticismo do escriba o impediu de enviar)