OPINIÃO

Traidores

Publicado em 14 de novembro de 2017

Ilustração: Ricardo Machado

Ilustração: Ricardo Machado

Immanuel Wallerstein, um dos bons pensadores da esquerda americana, escreveu sobre a distância entre o conceito e a realidade do papel da burguesia na história do capitalismo.

Segundo Wallerstein, a “traição da burguesia”, quando não cumpre o papel que lhe é atribuído no que chama de mito dominante do marxismo clássico, não é uma anomalia, mas uma constante.

A realidade que desmente o conceito é que a burguesia só fez o que tinha que fazer num determinado período histórico, quando acabou com o feudalismo, e que principalmente a partir do século 19 não faz outra coisa senão frustrar os que esperavam que ela terminasse o serviço, eliminando qualquer ideia de separação entre servos e senhores hereditários.

Segundo Wallerstein, a industrialização, o progresso científico e a acumulação de riqueza não só consagraram o individualismo empreendedor como criaram novas formas de servidão.

E a burguesia não revelou outra pretensão a não ser a de se aristocratizar, ou voltar ao idílico mundo dos feudos, nem que sejam só sítios com cerca eletrificada contra aldeões revoltados.

Quando a Terceira Internacional concluiu que, em muitos casos, o proletariado precisava apressar a revolução burguesa, sem a qual a revolução socialista seria impossível, ainda se apegava ao mito. Confiava em que todos cumpririam a sua parte no processo inevitável, mesmo que alguns se atrasassem um pouco.

A burguesia só traiu mesmo uma expectativa errada.

No Brasil, este cemitério de conceitos frustrados, tudo está atrasado, inclusive a desilusão com a burguesia. Esta ainda não fez nem a sua primeira entrada em cena, a julgar pela persistência do feudalismo nas nossas relações sociais, mas ainda se confia que ela desempenhará seu papel histórico, cedo ou tarde.

Isso explica o sucesso entre nós das revoluções retóricas que não mudam nada, e a proliferação de salvadores de ocasião virando a expectativa marxista de pernas para o ar e acreditando que a burguesia possa fazer a revolução proletária por ela. Vivemos numa certa confusão de atribuições desde a nossa inédita secessão em família, quando Dom Pedro declarou a nossa independência de Portugal e do seu pai.

O fato de a própria aristocracia ser obrigada a fazer o papel da burguesia no nosso ato inaugural nos acostumou mal: desde então, vivemos nesta secreta esperança que o nosso patriciado resolva todos os nossos problemas, suicidando-se.

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