Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
O cenário eleitoral brasileiro acentua três importantes evidências de recalcamento do feminino: a deposição da primeira mulher presidenta e o desinvestimento nas pautas feministas; a baixa representação política das mulheres; e a disputa do voto feminino a partir de valores falocráticos.
Alguns movimentos pré e pós-golpe se situam na contramão das conquistas femininas, a começar pela destituição da presidenta da República e a sua contínua desqualificação, apresentada como “poste” de seu antecessor e descrita como desequilibrada e insegura, atributos geralmente associados às mulheres. Não é de estranhar o registro de Dilma em seu último discurso presidencial: “As futuras gerações saberão que, na primeira vez que uma mulher assumiu a Presidência do Brasil, o machismo e a misoginia mostraram suas feias faces. Abrimos um caminho de mão única em direção à igualdade de gênero. Nada nos fará recuar”.
Contudo, tivemos graves retrocessos no governo Temer: a ausência de representação feminina na primeira composição ministerial; o rebaixamento da Secretaria de Políticas para as Mulheres; a volta do primeirodamismo com o Programa Criança Feliz, promovendo a imagem midiática de Marcela Temer como “bela, recatada e do lar”. Por outro lado, as chamadas “pautas-bomba” no Congresso Nacional não reconheceram a maior vulnerabilidade feminina: a reforma previdenciária, igualando a idade de aposentadoria entre homens e mulheres; e a reforma trabalhista, admitindo que mesmo as grávidas trabalhem mais, em ambientes insalubres e com parcelamento de férias.
Em tal contexto, seria de se esperar uma maior participação política das mulheres, o que não se observou nas eleições municipais de 2017. Das 5.570 cidades brasileiras, somente 52 tiveram mulheres candidatas às prefeituras. Entre as capitais brasileiras, apenas Boa Vista elegeu uma prefeita. E, em 11 capitais, o número de vereadoras cresceu, em 10 houve uma redução e em cinco se manteve o mesmo.
As razões para esses resultados ainda são pouco conhecidas, mas alguns estudos sinalizam o imaginário social que não reconhece o papel da mulher na vida pública, a escassez de mulheres nos diretórios dos partidos e os modelos de financiamento das campanhas ou de distribuição do horário eleitoral, concorrendo para o próprio recuo feminino pela antecipação das dificuldades.
O problema é que diante dessa baixa representatividade nem sempre se pode esperar que candidatos homens tenham sensibilidade com as demandas femininas. A retórica misógina de alguns deles nessas eleições, por exemplo, nos leva a antever os riscos de transformarem seu desprezo pela cidadania das mulheres em política de Estado.
Muito embora esses candidatos expressem uma mentalidade colonial, eles não podem ser considerados “velhos políticos”, pois suas pautas expressam uma atualização perversa do projeto neoliberal. A psicanalista brasileira Suely Rolnik, no recente livro Esferas da Insurreição, analisa a “inesperada aliança das forças neoliberais e conservadoras” no compartilhamento de um mesmo modelo de identificação subjetiva: o inconsciente colonial-capitalístico. Ela destaca que se trata de um acordo temporário, pois o conservadorismo nacionalista não interessaria ao capital transnacional. As “subjetividades rudes” operariam como “capitães-do-mato” no trabalho sujo de neutralizar os coletivos feministas, homossexuais, transexuais, indígenas ou negros pelos riscos de mutações na ordem social.
Por isto, não surpreende a falta de barreiras éticas ao candidato Jair Bolsonaro quando: afirma a uma deputada feminista que ela não merecia ser estuprada; deseja à ex-presidenta Dilma que ela acabe infartada ou com câncer; recomenda bater no filho que “começa a ficar assim meio gayzinho”; refere ter “fraquejado” ao ter o quinto filho e, por isso, nasceu uma mulher; declara que seus filhos foram “muito bem educados” e por isso não “corre o risco” de eles se apaixonarem por uma negra; associa a luta contra o feminicídio como um caso de “mimimi”; sugere que a posse de armas seja o verdadeiro empoderamento feminino; pega a mão de uma criança para imitar o gesto de atirar com uma arma; ou propõe que a mulher ganhe um salário menor porque engravida.
Tais enunciados são tomados aqui como analisadores do pânico masculino com as conquistas femininas, tais como a emancipação financeira, a maior projeção na escola e no mercado de trabalho, o domínio sobre seus corpos e a sua lenta mas crescente presença na vida pública. O filósofo italiano Antonio Negri nos dá outra pista ao destacar que a expansão do capitalismo depende, cada vez mais, de qualidades e valores ligados ao feminino diante da demanda comunicacional e cooperativa do trabalho em rede. Se, como o autor afirma, “o futuro do capitalismo é mulher”, os (neo)conservadores estariam resistindo não apenas à ascensão das mulheres, mas a um novo princípio de organização política, cuja força econômica estaria no amor ao comum – de formas de vida, afetos, conhecimento e bens.
Sendo assim, o mais importante nessas eleições não é o aumento na representação feminina na política, tampouco a conquista do voto feminino, mas a afirmação do devir mulher que Gilles Deleuze e Félix Guattari associam à reversão do ideal social fálico que debilita a potência de criação e cooperação, condição para a construção do comum. Como este devir não é, evidentemente, exclusivo das mulheres, seria preciso uma resistência política necessariamente interseccional, na convergência entre gênero, raça, etnia, classe e geração. As urnas nos darão a resposta…