Em defesa da inocência das crianças: mensagem ao petit Jair Bolsonaro
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A escritora francesa Bruller fez a seguinte declaração ao tomar conhecimento das críticas feitas a seu livro Aparelho Sexual e Cia. por um dos candidatos à presidência da República: “Eu acho que lá no fundo do Bolsonaro existe um pequeno garoto, o petit Jair, que teria adorado se, na sua infância, lhe tivessem dado (um exemplar) de presente”.
A maioria dos especialistas concordaria com esta sugestão uma vez que a educação sexual na infância e adolescência é considerada uma das estratégias mais efetivas para o desenvolvimento de uma sexualidade saudável, segura e prazerosa. Inúmeros estudos evidenciam que a informação qualificada, de acordo com a faixa etária e grau de maturidade, é decisiva para que crianças e adolescentes estejam mais preparados para o cuidado de si, com maior autonomia e responsabilidade.
Pode-se supor, então, que não apenas o petit Jair, mas muitas outras crianças brasileiras teriam se beneficiado com projetos educacionais e culturais com este foco, principalmente no contexto contemporâneo de maior vulnerabilidade da infância e adolescência associada a alguns fatores, tais como erotização precoce, coisificação do corpo feminino, violência sexual, redução da idade de início das relações sexuais, juvenilização do HIV, aumento da gravidez e de abortos entre adolescentes e bullying relacionado à diversidade sexual.
Ao invés de apoio a políticas públicas para a reversão deste cenário, muitos parlamentares vêm se dedicando a manipular os temores relacionados à sexualidade, especialmente pela exploração de uma ideia de infância ameaçada. Essa retórica amedrontadora apresenta uma dupla “vantagem”. Além da proteção das crianças ser uma pauta inquestionável, permite o deslocamento do debate, produzindo a invisibilidade de uma das maiores ameaças à infância brasileira: a aprovação no Parlamento do congelamento de recursos para a educação e saúde nos próximos vinte anos.
Em um texto datado do ano passado, Eliane Brum indaga como os parlamentares “ladrões de direitos constitucionais” poderiam criar uma base eleitoral nos segmentos sociais que acabaram de ser espoliados pelos seus próprios votos. Sua resposta: “Apele para a moralidade”. O ambiente propício já estava dado. Quase cem anos depois de Freud ter descrito pela primeira vez a sexualidade infantil, este tema continua produzindo uma legião de pais, mães e educadores desnorteados. A atual instabilidade é gerada pela desconfiguração das referências tradicionais sobre a família e as práticas sexuais. E esse mal-estar vem sendo transformado em pânico moral pela disseminação do medo. Assim, ficou mais fácil apresentar a solução: votar em alguém que possa controlar o descontrole.
Quem acompanha a trajetória desse parlamentar reconhece que sua notoriedade nacional foi alavancada em torno da polêmica sobre o chamado kit gay, um conjunto de cadernos e de material audiovisual produzido pelo MEC em 2011 no contexto do Programa Brasil sem Homofobia, cuja distribuição foi vetada pela presidenta Dilma por pressões de parlamentares e lideranças religiosas. Mesmo assim, ele evocou o fato para justificar o seu voto favorável ao impeachment em 2016: “Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve”.
Tais declarações ignoram que o processo formativo de crianças para o exercício da sexualidade não pode ser considerado uma “ideologia de gênero”, tampouco uma “doutrinação marxista” termos usados de forma recorrente por aqueles que criticam a educação sexual, enquanto são tolerantes com o doutrinamento religioso ou, então, dizem que se deve falar de sexualidade apenas na vida privada, mas pautam este tema de forma obsessiva e alarmante na esfera pública.
Quem defende os direitos das novas gerações reconhece que a educação sexual, em qualquer âmbito, deve sempre visar o empoderamento das crianças e dos adolescentes para que possam desenvolver as habilidades necessárias que lhes permitam fazer as escolhas que irão preservar sua dignidade.
Crianças e adolescentes têm o direito de serem educadas sobre sua vida sexual e produtiva de acordo com a sua faixa etária e grau de maturidade. E tal processo deve ser assegurado, em primeiro lugar, pela família em compartilhamento com o Estado, haja vista que a carta constitucional determina que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família.
Isto posto, voltamos ao argumento de defesa da inocência das crianças, com o qual concordamos. Mas não me refiro aqui à concepção de inocência infantil associada a pecado ou de imaturidade, própria da mentalidade moralista e tutelar. Evoco um outro tipo de inocência das crianças.
Nietzsche era encantado com a sinceridade e a capacidade da criança de descobrir o novo e de sempre se surpreender com o corriqueiro. Para ele, os adultos se tornam domesticados, sobrecarregados do peso que a vida nos impõe, com suas regras e valores descabidos que nos subjugam e, assim, vamos perdendo a alegria da experimentação e de um novo começar. A criança, entretanto, é um espírito livre pois através da imaginação ela cria e recria, constrói e reconstrói novas realidades. Por isto, a criança representa a superação dos valores morais e a criação de novos valores. Não seria esta a inocência da criança que precisamos priorizar no Brasil? Não estaria nela as possibilidades de viver com menos hesitações e medos, superando os estereótipos e os preconceitos próprios da pequenez de gente grande? Que esta criança sobreviva em todos nós, seja qual for o resultado nas urnas.
*Carmen Silveira de Oliveira é psicóloga e escreve mensalmente para o site do jornal Extra Classe