A autonomia da escola e da universidade
Foto: Pixabay
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A função da educação – seja familiar, escolar ou acadêmica – é tornar o ser humano um ser esclarecido e autônomo que pense por si, sem depender de outros. Para Kant, “pensar por si mesmo significa procurar em si mesmo a suprema pedra de toque da verdade (isto é, em sua própria razão); e a máxima que manda pensar sempre por si mesmo é o esclarecimento [Aufklärung]”. Assim, entendia este pensador, “deve-se orientar o jovem à humanidade no trato com os outros, aos sentimentos cosmopolitas. Em nossa alma há qualquer coisa que chamamos de interesse: por nós próprios; por aqueles que conosco cresceram; e, por fim, pelo bem universal”. Ou seja, desenvolver a autonomia intelectual, ética e política das crianças e jovens é o télos máximo da educação.
Também nesta perspectiva, o educador americano John Dewey, apregoava que a função principal da educação em toda a sociedade é a de ajudar as crianças a desenvolver um “caráter”, não somente para fazerem parte dessa sociedade, mas, fundamentalmente, para transformá-la. A educação para a democracia requer que a escola se converta em “uma instituição que seja, provisoriamente, um lugar de vida para a criança, em que ela seja um membro da sociedade, tenha consciência de seu pertencimento e para a qual contribua” (Dewey, 1895), mediante a criação de um entorno social em que as crianças assumam, por si mesmas, as responsabilidades de uma vida moral e democrática.
A Constituição Federal brasileira (Art. 206) autoriza que o ensino seja ministrado com base na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, bem como no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Numa sociedade democrática, como a nossa, tais manifestações deveriam ser saudadas enquanto experiências coletivas de cidadania, exercitados em espaços acadêmicos formativos, que expressam e preparam estes estudantes para uma vida juntos, em sociedades plurais e diversificadas, aos quais pertencem.
“A educação é um processo social, é desenvolvimento. Não é preparação para a vida, é a própria vida” (John Dewey). Se toda sociedade está envolvida num processo político eleitoral, os estudantes têm não somente o direito de participar, mas, também, uma excelente oportunidade de aprendizagens com os educadores e as instituições responsáveis pela sua formação. A reflexão sobre o que está ocorrendo no Brasil precisa ser mais ampla, pois o senso comum indispõe-se com a sabedoria plural da filosofia e das ciências. O mal reside na superficialidade e na ausência de reflexão e crítica, alertava Arendt.
As escolas e as universidades devem ser concebidas como espaços de criação, preservação e transmissão de conhecimentos científicos, técnicos, humanos, estéticos, éticos e políticos. O desenvolvimento da ética, inclusive, não se dá na intimidade da consciência particular de cada um, e sim no coletivo, no debate, na discussão, na argumentação. Ela será resultado da intervenção da inteligência coletiva com vistas a limitar a conduta de cada um visando proteger o bem maior, que é a convivência sadia e harmônica entre todos” (Clovis Barros). Portanto, é da natureza das instituições acadêmicas promover o debate e a reflexão no âmbito de sua autonomia e liberdade de cátedra.
A democracia, enquanto valor de uma sociedade, deve ser aprendida e exercitada na escola, nas famílias e em todas as suas instituições. E ela – a democracia –, aceita uma sociedade dividida e conflitada, colocando-se como meio pacífico para resolver as divergências pelo diálogo e a mediação. O democrata trata o Outro como outro, não como estranho muito menos como inimigo. Posso não concordar com o pensamento do adversário, mas devo reconhecer a legitimidade de sua existência política tanto quanto a minha.
Desde a origem da Universidade na Idade Média, a autonomia, a liberdade de cátedra e a liberdade intelectual são princípios ontológicos que a caracterizam e sustentam. Isto significa que o conhecimento não pode ser monitorado por quem está de fora ou no poder (quer seja religioso, familiar, político, econômico ou midiático). Este é um espaço de formação “que pode ser dito fora do poder” como a definiu Roland Barthes. Autonomia acadêmica significa o poder de dar a si a própria lei, autós (por si mesmo) e nomos (lei). Não se entende este poder como algo absoluto e ilimitado; também não se concebe como sinônimo de auto-suficiência, visto que a autonomia implica a responsabilidade. Uma vida auto-responsável é aquela que faz a si como obra de arte de tal forma que possa conciliar ética e estética. As universidades e escolas não dizem os que seus estudantes devem pensar, mas os ensinam a pensar. Um pensar livre!
A educação que objetive formar para a autonomia precisa ser dialógica, precisa educar para a participação soberana e para o diálogo constante. Somente dessa forma, ela estará preparando para o exercício da democracia. A democracia supõe que os sujeitos sejam capazes de liberdade, autodeterminação e autonomia. Para Ortega Y Gasset, a missão da universidade (e da escola) deve ser a casa dos estudantes para prepará-los para a vida e vivê-la da maneira mais completa possível, isto é, formar uma pessoa culta, autônoma, capaz de impulsionar criativamente o destino político do seu país.
Segundo Richard Sennett, a sociedade atual “está desabilitando as pessoas na condução da vida cotidiana. Dispomos de muito mais máquinas do que nossos antepassados, mas de menos ideias sobre a melhor maneira de usá-las; temos mais canais entre as pessoas, graças às modernas formas de comunicação, mas menor compreensão sobre como nos comunicar bem”. Estamos a produzir-se profundas alterações naquilo que as sociedades democráticas ensinam aos jovens e ainda não lhe aferimos o alcance. Ávidos de sucesso econômico, os países e os seus sistemas de ensino – e os pais também –, renunciam imprudentemente as competências que são indispensáveis à sobrevivência das democracias. Se esta tendência persistir, em breve, alerta Martha Nussbaum “vão produzir-se pelo mundo interior gerações de máquinas úteis, dóceis e tecnicamente qualificadas, em vez de cidadãos realizados, capazes de pensar por si próprios, de por em causa a tradição e de compreender o sentido do sofrimento e das realizações dos outros”.
Há 50 anos – maio de 1968 – os jovens e estudantes denunciavam: “A liberdade não é um bem que possuímos. Ela é um bem que nos impedem de adquirir mediante leis, regras, preconceitos, ignorância, etc…”. Que as instituições de hoje – seja o Estado, a família, a igreja, escolas e mesmo a própria sociedade – não censurem os estudantes e nem culpem os professores e as instituições escolares por instigarem mentes que pensam de forma própria, livre e autônoma!
Gabriel Grabowski, filósofo, doutor em Educação, professor e pesquisador, integra a equipe de colunistas do Extra Classe desde janeiro de 2017. Escreve mensalmente sobre questões da dinâmica no meio educacional.