OPINIÃO

A democracia e os lobos

Por Marcos Rolim / Publicado em 20 de novembro de 2018

Foto: Freepik

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“O país segue sendo uma democracia, mas, em seu centro, temos uma obsessão antidemocrática. Até quando a democracia sobreviverá à vocação autoritária que se aninhou em seu peito”?

A possibilidade de que uma plataforma política de extrema-direita, com características neofascistas, pudesse vencer as eleições no Brasil me atormentou nos últimos anos como um horizonte escuro se aproximando. Escrevi sobre isso vários e insistentes textos e argumentei em favor de uma política de Frente Ampla muito antes da campanha começar.

Será preciso avaliar porque essa estratégia nunca foi considerada seriamente pela esquerda e porque parte importante dela lidou com a ideia de que Bolsonaro seria o candidato ideal para ser derrotado no segundo turno. Ao mesmo tempo, deveremos avaliar com cuidado os sentidos da votação recebida por Bolsonaro. A forma mais simples e mais errada de fazer isso é pressupor que o Brasil possui 57,5 milhões de eleitores de direita, cuja maioria compartilha os valores da candidatura vitoriosa. Se isso fosse verdadeiro, não se compreenderia porque boa parte desse mesmo eleitorado já votou no PT.

O que será a noite prolongada autorizada pelas urnas não se sabe. Podemos sentir as ameaças como agulhas no ar, como se cada entardecer fosse anunciado por uivos. Na verdade, passamos a viver em uma dimensão paradoxal da política: o país segue sendo uma democracia, mas, em seu centro, temos uma obsessão antidemocrática. Até quando a democracia sobreviverá à vocação autoritária que se aninhou em seu peito? Será possível conter a ameaça que ela representa? Isso irá depender de muitas variáveis como a postura das instituições, a forma de agir da oposição, a resistência dos movimentos sociais, a atuação da mídia, a disposição das pessoas etc. Por hora, se pode realizar um inventário dos riscos; deduzir, a partir das pegadas dos lobos, os caminhos que eles pretendem.

O Brasil de Bolsonaro será, certamente, um país mais violento do que aquele que já temos. A promessa de “armar a população” é um desatino que aumentará os crimes dolosos contra a vida; as mortes acidentais e as taxas de suicídio. Haverá mais armas em circulação, o que significa mais oportunidades para furtos, roubos e desvios de armas para o mundo do crime. Casos de mortes promovidas em conflitos banais, no trânsito, nas residências, nos bares, serão mais frequentes.

Mudanças regressivas tentarão ser impostas na Educação. Além de bobagens como ‘escola sem partido” e sem “ideologia de gênero”, a ideia de investir em “Educação a Distância” no ensino fundamental, defendida por Bolsonaro, é a forma de introduzir no Brasil o homeschooling (Educação em casa), política proposta por seitas fundamentalistas que pretendem que os pais tenham o direito de não matricular seus filhos na escola, como já ocorre nos EUA. As crianças poderiam ser, assim, educadas a partir da Bíblia, sem contato com o “comunismo” – vale dizer, com tudo aquilo que represente ciência ou democracia.

Nas ciências, Darwin será exorcizado e toda pesquisa considerada suspeita. Já a democracia será o principal problema do novo governo, porque ela pressupõe convivência com a divergência, negociação política, respeito às instituições, igualdade entre homens e mulheres, direitos das minorias, laicidade, consulta popular, prestação de contas, entre outros temas, o que não é compreendido pelos amantes da guerra fria, nem pelos talibãs neopentecostais.

A submissão aos interesses do agronegócio, das mineradoras e das madeireiras acarretará muito mais desmatamento da Floresta Amazônica, além de outros crimes ambientais. Bolsonaro anunciou que irá retirar o Brasil do Acordo de Paris, o mais amplo entendimento entre as nações para reduzir a emissão de gases estufa. Mesmo que não consiga esse intento, seu governo irá agredir o meio ambiente, a sustentabilidade e os direitos dos índios, dos ribeirinhos e dos povos da floresta.

O discurso de ódio contra os direitos humanos, proponente da violência em várias dimensões, chegou ao poder em um formato populista higienista.  Ele se pretende “antissistema”, mas seu conteúdo é antipluralista e proporá a divisão da sociedade entre “nós e eles”, “cidadão de bem x vagabundos”; “cristãos x ateus”, “patriotas x comunistas”. Para enfrentá-lo, será preciso lutar para que não se consolide essa divisão identitária, o que envolve o desafio de politizar a resistência e se mover, permanentemente, em aliança com todos que se opõem à barbárie. As alianças mais importantes começam nas redes de jovens libertários que saíram às ruas para defender a democracia e os direitos fundamentais.

A componente autoritária dos “profissionais da violência” e das nulidades que serão reunidas em posições chave no aparelho de Estado agenciará respostas arbitrárias e violentas também para implementar reformas de um liberalismo de tipo selvagem. O agravamento desses dissensos poderá abrir, de vez, as portas do inferno.

Penso que o mais importante a ter presente é a consciência de que os desafios que temos pela frente são imensos e distintos de tudo o que já vimos. Quem imaginar que poderá dar conta disso atuando da mesma forma, com a mesma narrativa, com os mesmos métodos e símbolos, estará se excluindo do jogo ou, pior, ajudando os lobos.

* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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