Foto: Reprodução/ Redes sociais com desenho de Angelo France/ Divulgação
Por que causa tanto estranhamento a coragem feminina? Esta é uma das perguntas suscitadas em meio à polêmica gerada pela ação de uma mulher para salvar um caminhoneiro em acidente envolvendo o helicóptero que vitimou o jornalista Ricardo Boechat e o piloto Ronaldo Quattrucci, no dia 11 de fevereiro. Leiliane Rafael da Silva, 28 anos, foi descrita como uma mulher forte e corajosa, enquanto os homens à sua volta foram criticados por estarem mais preocupados em gravar e compartilhar vídeos do resgate. Como compreender tais reações?
Estudos recentes em Psicologia têm comprovado que existem diferenças de gênero no julgamento de dilemas morais. Uma ampla pesquisa realizada no Canadá por Rebeca Friesdorf e colegas dela, em 2015, por exemplo, concluiu que as mulheres são mais compreensivas com os sentimentos de outras pessoas do que os homens.
Esse resultado vem ao encontro dos estudos desenvolvidos pela filósofa e psicóloga Carol Gilligan, professora de Educação da Universidade de Harvard, que nos anos 80 introduziu de forma mais sistemática uma discussão do desenvolvimento diferenciado de meninas e meninos quanto à formação do juízo moral. Gilligan elaborou uma forte crítica de alguns aspectos das teorias de autores consagrados como Sigmund Freud, Jean Piaget e Lawrence Kolberg, pois eles teriam consolidado, a partir de diferentes perspectivas, a ideia de que as mulheres apresentam uma parada ou atrofia no desenvolvimento moral. Contudo, para a pesquisadora americana, essa interpretação somente é possível quando a experiência masculina for tomada como referência.
Para Kohlberg, a ênfase no julgamento moral é a noção de justiça, que forneceria os subsídios necessários para a fundamentação racional da escolha em dilemas morais, a partir de um quadro de princípios, regras e imparcialidades. Para este autor, as mulheres seriam moralmente inferiores, pois suas decisões morais são tomadas a partir da responsabilidade para com aqueles que integram os círculos de relacionamentos.
Em contraponto, Gilligan argumenta que tal interpretação negligencia o fato de que o contexto e as circunstâncias particulares são também referências legítimas na formação de um juízo moral. Para a autora, esse é o ponto de vista feminino, denominado por ela de ética do cuidado e que responde, antes de tudo, às necessidades dos outros e não tanto às exigências de regras abstratas.
Para melhor entendimento dessa ética feminina seria preciso levar em conta algumas ressalvas. De um lado, não se deve incorrer no equivoco de reproduzir o estereótipo de que as mulheres são guiadas principalmente por emoções. Faz-se ainda necessário dissociar o cuidado feminino de uma perspectiva maternalista que reforça a ideia de que a mulher nasceu para cuidar dos outros, o que tem contribuído para perpetuar a posição de inferioridade das mulheres na sociedade ao delimitar seu espaço ao circuito doméstico. Também é indispensável desvincular a ideia de que as mulheres têm maior solidariedade porque estão propensas a sofrer discriminações, o que nos tornaria mais identificadas com aqueles que padecem.
E, por último, é importante se desvencilhar da herança dualista kantiana, que acentua a oposição entre razão e emoção, universal e pessoal. Assim sendo, a afirmação de uma ética do cuidado não é feita em detrimento de uma ética da justiça, pois estaríamos repetindo os erros anteriores de considerar um dos modos superior ao outro. Não se trata, portanto, de opor os dois tipos de vozes morais, feminina versus masculina, tampouco desvalorizar uma para poder afirmar a outra. Logo, o que queremos salientar é que muito embora a sociedade patriarcal não fomente a universalização do cuidado e o mantenha controlado e circunscrito como uma suposta qualidade “exclusivamente feminina”, cada vez mais se faz necessário que a ética da justiça (igualdade) seja acompanhada da ética do cuidado (equidade).
A partir de tais considerações podemos retomar a cena original envolvendo Leiliane. Sua atitude não foi motivada simplesmente por um “instinto de mãe”, muito embora em uma reportagem ela tenha usado esse argumento. Não se trata também de uma mera reação de “coragem”, como foi exaltado na mídia e que mal dissimula a estranheza de que as mulheres possam ser fortes do ponto de vista físico e psicológico. A palavra “coragem” só faria sentido aqui caso fosse evocada em sua raiz, que tem origem no latim coraticum, composto por COR (que significa coração) e o sufixo ATICUM (indicando ação), ou seja, a coragem como uma ação do coração ou, dito de outra forma, como uma manifestação da ética feminina do cuidado.
Sobretudo seria inadequado atribuir a esse gesto um ato heroico, muito menos associar Leiliane à Mulher Maravilha, pois, como ela mesma referiu “eu simplesmente salvei alguém que precisava de ajuda, foi um ato humano”. A que ponto chegamos em nosso país em que a ética do cuidado, quando exercida, é vista como coragem dos heróis e não como uma qualidade humana de empatia e compaixão, que deveria estar sendo agenciada e presente em todos nós…
Ao final, restam novas indagações. Em que medida podemos contar com mais Leilianes dispostas ao sacrifício de si, em defesa da vida do outro ou de uma causa? Poderemos ser anjos da guarda, uns dos outros? Seremos capazes de testemunhar e protagonizar o que atravessa nossa existência para além do olhar voyeurístico das telinhas que transformam a bruta realidade em mais um espetáculo? Não tenho qualquer certeza sobre isso, mas continuo me alimentando da confiança nesses possíveis.