Foto: Fábio Pozzebom/Agência Brasil
Foto: Fábio Pozzebom/Agência Brasil
O Brasil está aperfeiçoando suas deformações políticas. Até um ano atrás, antes da ascensão de Bolsonaro como possibilidade de poder, Michel Temer era a representação do que há de pior no que genericamente chamam de vida pública.
Antes dele, Sarney, Collor, Eduardo Cunha e alguns outros menos votados, inclusive Maluf, ocuparam o posto. Quando Dilma foi derrubada pelo golpe, em agosto de 2016, nada poderia ser pior do que o presidente da Câmara.
Aécio e os tucanos idealizaram o golpe. Mas Cunha acionou a operação. O operador das manobras no Congresso foi descartado pela direita, depois de concluído o trabalho, e Temer assumiu a sucessão. Nenhum caráter político poderia ser pior do que o do vice golpista.
E aí Bolsonaro venceu a eleição. O coronelismo de Sarney, a soberba de Collor, a amoralidade de Cunha e a raposice de Temer não são nada perto do conjunto da obra de Bolsonaro. Chegamos ao topo da total inversão de valores.
Nenhum presidente antes de Bolsonaro atacou negros e gays. Nenhum ao menos insinuou que poderia estuprar uma mulher como prova de imposição do machismo que só violenta as bonitas. Nenhum atacou os índios. Nenhum tentou desqualificar os professores e a universidade.
Nenhum teve a petulância de defender o porte de armas, inclusive nas ruas, como solução contra a violência. Nenhum deles, nem mesmo Sarney, teve filhos interferindo diretamente, e com posições extremadas, nas atitudes do presidente.
É certo também que nenhum nunca pensou em exaltar um torturador. É verdade que muitos fizeram conluios com todo tipo de corrupto, grileiro, desmatador. Mas não se sabe de nenhum deles com relação direta com pessoas ligadas a grupos de extermínio ou milicianos.
Nenhum propagou tanto ódio. Todos chegaram ao poder com a conversa de que iriam governar sem discriminações, porque assim é que se cumpre a liturgia dos vitoriosos. Ninguém governa para todos, mas a política se submete a ritos retóricos civilizatórios, mesmo que muitas vezes como farsa. Bolsonaro fez tudo ao contrário.
Bolsonaro chegou ao cume do que existe de mais tenebroso na política em tempos de democracia. Transpôs todos os limites do que poderia ser razoável na convivência com os discordantes, na área dos costumes, das questões ambientais, da economia, de conquistas sociais, de direitos humanos e de política externa.
E até pouco tempo atrás Bolsonaro era apenas uma excrescência da política. Mas aí está ele, e a pergunta que irá se manter até o final de seu mandato, seja daqui a quatro anos ou daqui a alguns meses, é essa: o que pode ser pior do que Bolsonaro?
Que trajetória errática pode conduzir o Brasil (e logo depois da eleição de um operário e de uma mulher) a algo mais repulsivo do que Bolsonaro e tudo o que ele representa? Se mantivermos a evolução da nossa vocação agora descoberta para aceitar o que parecia inaceitável, o que virá depois de Bolsonaro e do entorno que sustenta, pelos descaminhos da democracia, também o poder de seus filhos?
Bolsonaro é o eleito da elite, mas nunca foi elite. O PSL, o partido que o abrigou, é um caso exemplar do baixo clero na política. Toda a base parlamentar que o sustenta no Congresso (e que ameaça debandar) é formada por medianos ou medíocres eleitos a reboque do discurso bolsonarista.
Mas Bolsonaro tem uma elite prestativa ao seu alcance, a dos militares que se engajaram ao seu projeto de governo. É só o que pode ser chamado de elite, ao lado talvez do economista Paulo Guedes, um liberal que estava havia décadas à espera de um cargo no poder.
Todo o resto, incluindo o controverso ex-juiz Sergio Moro, pode ser posto ao lado de Damares Alves, do chanceler Araujo e do colombiano Vélez-Rodriguez.
Com Temer preso, a sensação entre boa parte das esquerdas é a de que a punição do golpista está fora do tempo. Que Temer não significa mais nada e que o sentimento de vingança se diluiu em meio ao que veio depois.
E o que virá depois de Bolsonaro, como sequência ao que foi criado até agora desde o golpe? Mas não se trata de imaginar uma alternativa de poder imediata, de um autogolpe dos militares, de nada circunstancial.
Vamos imaginar mais adiante o pesadelo da construção de uma criatura política capaz de suplantar a capacidade de Bolsonaro de andar na contramão do que a humanidade construiu durante séculos.
Teremos essa figura? Teremos eleitores capazes de ouvir, aceitar, entender, eleger e legitimar pelo voto essa criatura, assim como Bolsonaro foi legitimado?
Não duvidem de mais nada. A criatura pode estar em construção na cabeça dos que já estão descartando Bolsonaro.
Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o jornal Extra Classe.