Militarização da educação pública e pesquisa ameaçada
Foto: Valter Campanato/Agência BrasiL
“A política econômica está sendo irresponsável e comprometerá todo o sistema de ciência e tecnologia construído ao longo de décadas no país”
(Ildeu de Castro Moreira, Presidente SBPC)
A política econômica em curso no país está sendo irresponsável e comprometerá o sistema de educação, de ciência e tecnologia do Brasil que vêm sendo desenvolvida há várias décadas. Os cortes de R$ 6 bilhões (25%) no orçamento do Ministério da Educação (MEC) e de R$ 2,1 bilhões (43%) no do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), somados ao limite de gastos impostos pela PEC 95, causarão graves impactos na educação básica e superior, nas pesquisas científicas em andamento, especialmente em áreas como infraestrutura, transporte, formação de professores, financiamento estudantil, qualidade do ensino e inviabilização das metas do PNE 2014-2024.
Esse alerta foi confirmado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), através da Carta de Sobral (de 30 março de 2019), oportunidade em que a SBPC se manifestou firme e decididamente em defesa da educação pública de qualidade, da ciência e da democracia no país. A comunidade científica reafirmou o papel do Estado como sendo essencial para a garantia dos direitos sociais dos brasileiros e que os “recursos para educação e para ciência e tecnologia não são gastos, são investimentos do presente em um futuro melhor para o País”.
O manifesto à sociedade brasileira prossegue reafirmando que a “valorização efetiva do professor e sua formação adequada são fatores essenciais para a melhoria da educação básica e que o “ensino de ciências é fundamental para a formação de um cidadão no mundo contemporâneo”. A carta destaca, também, que os países desenvolvidos investem de maneira ainda mais acentuada em CT&I em momentos de crise econômica. Pesquisas demonstram que o investimento em ciência tem repercussão social significativa e retorno econômico grande. É inaceitável que sejam feitos novos cortes em um orçamento já tão reduzido. As consequências afetarão toda a estrutura de pesquisa no país e, ainda, os setores empresariais que buscam promover a inovação. Eles comprometem o funcionamento do sistema nacional de CT&I, construído ao longo de décadas, dificultam a recuperação econômica e certamente irão afetar seriamente a qualidade de vida da população brasileira e a soberania do país.
Para agravar, além da subserviência dos gestores das áreas da educação e ciência aos interesses da política econômica financeirista de Guedes e Bolsonaro, os atuais gestores do MEC estão envolvidos em disputas internas de poder, sem planejamento estratégico para as respectivos áreas, sem nenhuma política ou programa de Estado, ou seja, sem rumo e sem horizontes para a educação, a ciência e a tecnologia nacional.
Nesse cenário confuso e obscurantista é possível perceber apenas algumas tendências, não menos assustadoras, na gestão da política educacional, entre as quais destaco: ocupação das funções estratégicas de planejamento e gestão das políticas educacionais por militares das diversas forças, ataques às escolas, às universidades públicas, aos professores e, a adoção do modelo de educação “cívico-militar” (Decreto nº 9.465, de 02 janeiro 2019) ao qual foi criada, inclusive, uma pasta responsável: a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares, vinculada à Secretaria de Educação Básica. Expressão de um pensamento anti-intelectualista e de uma política fascista.
O mais grave e trágico é que esta paralisia e desconstituição é realizada em detrimento de políticas, projetos, programas e experiências exitosas que estavam em desenvolvimento pela educação, pela ciência, pela escola e por educadores e especialistas, respeitados e reconhecidos nacional e internacionalmente.
Desde a década de 1990, o discurso das elites e de seus formadores de opinião (de ideologias), girava em torno da ideia de “choque de gestão e avaliação na educação”, calcados nas ideias de eficiência, das metas e da expertise da administração privada empresarial. Os controles, as avaliações de desempenho e as consultorias educacionais são a expressão dessa visão e concepção. Porém, agora, no atual governo autodenominado de extrema-direita, esse processo assume uma feição e perspectiva mais assustadoras: gestão educacional por profissionais das forças armadas, militarização das escolas públicas de educação básica e desconstituição das instituições formadoras, enquanto espaços públicos e laicos de formação, especialmente os Institutos Federais de Educação (IFs) e as Universidades Públicas Federais.
Esse processo direcionado e intencional se efetivará por meio de uma drástica e sistemática redução do orçamento e dos investimentos na educação e na ciência, suspensão dos concursos públicos, revogação de políticas de apoio estudantil, privatização das universidades (pela instituição da cobrança de mensalidades e possível “senaizização” dos IFs) e ataques frequentes aos professores e cientistas, supostos “doutrinadores”.
A escolas de educação básica e técnica da rede federal, bem como outras tantas escolas das redes estaduais, são as que apresentam o melhor desempenho de qualidade, conforme avaliações do INEP/MEC (ENEM e IDEB), além das avaliações do PISA/OCDE. No ranking das 10 melhores instituições públicas do país, de acordo com o resultado do ENEM em 2017, sete são federais, entre colégios de aplicação das universidades federais e rede dos institutos federais (IFs). Na lista aparece apenas um colégio militar do Exército, o de Belo Horizonte (MG), em 7º lugar.
A principal diferença, em relação às escolas públicas convencionais, é o investimento do Exército por aluno: R$ 19 mil ao ano, quase cinco vezes mais do que em uma escola pública regular. Já o custo das escolas federais, que possuem desempenho superior aos colégios militares, apresentam um investimento um pouco mais baixo, de R$ 16 mil ao ano por aluno. Enquanto que o valor previsto no Fundeb, valor anual mínimo nacional por aluno, ficou definido em R$ 3.238,52 para o exercício de 2019.
Ainda, a título de ilustração, em seu estudo Education at a Glance 2017, a OCDE demonstra que a média dos países membros da organização era de US$ 10.759 anuais (ou R$ 40.097) por aluno, levando em conta todos os níveis de educação – da educação infantil até o ensino superior. Nesse contexto, o Brasil desembolsou pouco mais da metade do valor: US$ 5.610 anuais (R$ 20.784). Para se ter uma ideia, o país gastou anualmente US$ 3,8 mil, ou seja, aproximadamente R$ 14.079,00 por aluno do primeiro ciclo do ensino fundamental (até a 5ª série) contra US$ 8,7 mil, ou cerca de R$ 32.238,00 pela média dos países da OCDE para esse ciclo, segundo o documento.
Para além do investimento ao ano por aluno, pois educação de qualidade é mais cara, a rede federal é pioneira e referência de uma concepção e projeto pedagógico que orienta-se pela formação integral dos estudantes e a oferta integrada do ensino médio e da educação profissional, com professores com título de mestre, doutor e pós-doutor – e, consequentemente, salários mais altos, que possibilitam dedicação integral e protagonismo dos estudantes.
Para o pesquisador Gaudêncio Frigotto (UFF e UERJ), quando se pergunta por que todas as escolas públicas de ensino médio não têm o mesmo desempenho, ele adverte que, em primeiro lugar, qualquer comparação com as demais escolas da rede pública é inadequada, porque elas estão longe de ter as condições minimante comparativas em termos de professores qualificados (a maioria com mestrado e doutorado), com grupos de pesquisa, laboratórios atualizados, biblioteca, espaço físico. Em segundo lugar, o diferencial está na proposta política e pedagógica da escola, centrada no debate e na concepção da escola unitária e politécnica; uma escola comprometida em formar jovens que articulem ciência, cultura e trabalho e lhes dê possibilidade de serem cidadãos autônomos; que possam escolher seguir seus estudos ou, se têm necessidade, ingressar na vida profissional.
O desafio é de universalizar o ensino médio com esta qualidade teórica, técnica e política. Mas isso significa que a sociedade brasileira terá de ter consciência de que o custo desta educação é, pelo menos, oito a dez vezes superior àquilo que se propõe mediante o Fundeb. O ensino médio dos países do capitalismo central não custa menos que U$ 4,5 mil aluno/ano. Isso equivale ao que uma família de classe média das grandes capitais brasileiras paga em escolas particulares laicas ou confessionais.
Pela importância estratégica, também, da rede de Centros Federais de Educação Tecnológica e das redes estaduais e municipais de escolas técnicas de nível médio, é fundamental que essas instituições tenham a possibilidade de restauração plena do nível médio de ensino, na perspectiva da educação politécnica ou tecnológica, e se constituam em referência efetiva de suas condições físicas, materiais, formação e condições do trabalho docente. Nessa perspectiva, tanto a reforma do “novo” ensino médio, que busca promover a escola de tempo integral, quanto a BNCC para o ensino médio e o “modelo cívico-militar” deveriam inspirar-se e referenciar-se no trabalho da rede pública federal e em experiências exitosas de outras redes e escolas similares.
O Brasil é celeiro de cientistas, educadores profissionalizados e especialistas em gestão educacional, qualificados e renomados, com capacidade e competência comprovada. Esses devem ser os líderes, com conhecimento nas ciências da educação, orientados por práticas democráticas e diálogo com a sociedade, para a reconstrução de um projeto educacional e de uma política de Estado para a educação e para a ciência brasileira.
Militarizar a gestão do MEC e implementar um modelo cívico-militar na educação pública é inadequado, equivocado e insensato. Não podemos admitir o desmantelamento da educação e da ciência brasileira. “Que o Sol luminoso do Brasil inspire e motive a todos nós na resolução dos problemas do País” e que o “destino do povo brasileiro esteja acima dos interesses financeiros ou de setores privilegiados da sociedade” (Carta de Sobral).
*Gabriel Grabowski, filósofo, doutor em Educação, professor e pesquisador, integra a equipe de colunistas do Extra Classe desde janeiro de 2017. Escreve mensalmente sobre questões da dinâmica no meio educacional.