OPINIÃO

Você é feminista?

Por Camen Oliveira / Publicado em 17 de abril de 2019

Foto: Reprodução Facebook

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Uma pesquisa do Datafolha divulgada nos últimos dias identificou que o feminismo é mais apoiado no Brasil entre os homens e que apenas 38% das mulheres se consideram feministas. Tais resultados reiteram o que já era conhecido – nem todos os homens são misóginos e nem todas as mulheres são feministas.

De um lado, é compreensível que é mais difícil para uma mulher se considerar feminista em um contexto que imprime a esta definição um peso negativo: “a feminista odeia os homens e a família, é mal-amada, feia, não usa sutiã, não se depila, não usa maquiagem, é ranzinza, mandona e fanática”. Isto explica em parte porque muitas mulheres se descrevem como “feminina e não feminista”. E também pode esclarecer o fato de que mais de 2/3 do total de entrevistados manifestaram concordância com ideias feministas, mesmo que não se definissem como tal.

Por outro lado, os estereótipos de gênero estão a tal ponto encrustados em nosso cotidiano que se tornam naturalizados. Somos ensinadas a se encolher, sentir vergonha, calar, querer agradar, não expressar raiva e fazer do fingimento uma arte. Como refere a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, tais expectativas se transformam em prescrições que impõem obstáculos para as mulheres serem mais livres em suas escolhas, concorrendo para um certo dilema entre o desejo de reconhecimento social e o de autoafirmação, como sugere o fato de que na pesquisa referida há um empate técnico entre as percepções femininas sobre os prejuízos e os benefícios do feminismo.

Por outro lado, este levantamento aponta diferenças em alguns segmentos de mulheres, que precisariam ser melhor analisadas, tais como as maiores rejeições ao feminismo entre as evangélicas enquanto a aprovação predominou entre as agnósticas, negras e pardas. Antes de indagarmos sobre que ideias e valores apoiam estas diferentes convicções, talvez fosse melhor identificar os pontos em comum pois, segundo Chimamanda, é muito fácil de reconhecer alguém identificado com o feminismo. Para ela, feminista é o homem ou a mulher que diz: “Sim, existe um problema de gênero ainda hoje e temos que resolvê-lo, temos que melhorar”. Portanto, se uma mulher diz não ser feminista, isto nos mostra, principalmente, o alcance real do patriarcado.

O ponto de partida da análise  sobre o feminismo geralmente sinaliza a sua correspondência com a justiça, o que colocaria o “problema de gênero” como intrinsecamente relacionado com a igualdade de direitos e oportunidades.

Como existem diferentes interpretações a respeito, caberia levantar algumas ressalvas para qualificar melhor o que entendemos por “igualdade de direitos”.

A trajetória do feminismo nas últimas décadas nos permite afirmar que não se trata de limitar o direito de cotas na disputa por cargos políticos em que as mulheres são transformadas em “laranjas” para fraudar o fundo de financiamento eleitoral. Tampouco de defender a inclusão em relações de trabalho pautadas pela histeria da produção ou o acesso a bens de consumo às custas do esgotamento e da dívida infinita.

As mulheres na contemporaneidade não pretendem ser vistas apenas como esposas ou mães, mas tampouco reduzidas ao valor de cliente ou de mercado. Não querem se deixar escravizar por padrões de qualquer natureza para compensar suas crises de gratificação narcísica pois a experiência nos tem demonstrado que o aparente desmonte de barreiras e proibições não nos levou, necessariamente, a uma maior capacidade de agir.

Se o lugar da mulher é onde ela quiser, isto implica em uma invenção permanente de si mesma. E, nesta perspectiva, caberia a “dica” do psicanalista francês Félix Guattari, ao afirmar que nos processos de subjetivação “todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas”. Dito de outra maneira, trata-se de superar as barreiras sociais que nos submetem e produzem o estreitamento das nossas escolhas, bem como nos levam a universalizar critérios ou experiências pessoais. Trata-se também de identificar as armadilhas de coação de si mesmo e que nos tornam incapazes do (re) nascimento.

Isto nos leva a agregar à luta feminista não apenas a justiça, mas a beleza. Para o filósofo coreano Byung-Chul Chan, o duplo sentido da palavra inglesa fair significa tanto o justo quanto o belo, indicando que ambas se sustentam na mesma ideia: a justiça é bela. Assim sendo, as mulheres não desejariam apenas ser incluídas na pólis mas produzir belas formas de vida, para além daquilo que se faz útil para o sistema. As feministas querem modificar a sociedade, tanto no sentido de possibilitar um incremento de justiça, quanto um aumento de felicidade.

Nesta direção, o feminismo não se circunscreve em um caráter inclusivo. Estaria mais próximo do sentido de “profanação” dado por Giorgio Agamben ao referir a necessidade de ir além das conexões funcionais originárias, atribuindo às coisas um uso livre, como quando as crianças ao brincar transformam os objetos, fazendo deles um uso diferente.

Diante do jugo a que estamos expostos pela aliança atual do conservadorismo com o hipercapitalismo, o feminismo talvez nos acene como um sinal vindo do futuro, que se traduz em uma vida melhor por um projeto de emancipação para mulheres e homens. Assim sendo, a questão mais relevante não deveria ser quantificar o feminismo mas qualificar o tipo e a finalidade das lutas feministas na contemporaneidade.


Carmen Silveira de Oliveira é psicóloga e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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