O que está por trás da guerra contra a “ideologia de gênero”
Foto: Valter Campanato / Ag. Brasil
O que leva parte do Brasil a acreditar que uma suposta “ideologia de gênero” represente a grande ameaça à família brasileira e aos currículos escolares? Para responder a essa questão, uma equipe multidisciplinar, formada por jornalistas, cientistas de dados, cientistas sociais e designers, coordenada pela Gênero e Número, organização de mídia orientada por dados com foco nas questões de gênero, decidiu criar o Reino Sagrado da Desinformação, um projeto que reúne pesquisa, análise de redes sociais, semântica e jornalismo de dados, com o objetivo de acompanhar o contexto atual da política brasileira, tendo a questão de gênero como foco central. O site do projeto (www.reinodadesinformacao.com.br) traz reportagens especiais, gráficos e outras visualizações interativas que mostram as conexões entre mídia, igreja e política construídas nos últimos 30 anos no país.
Esse conjunto de trabalhos procura mostrar como se formou o ecossistema político-religioso conservador que criou condições para a propagação pelo país do discurso da chamada “ideologia de gênero”. Para as criadoras do projeto, não há obra divina no governo Bolsonaro, mas muita estratégia, semântica e midiatização da política e da religião. O processo de disseminação da informação, aponta ainda o projeto, é complexo e sofisticado, envolvendo uma “rede de conexões construída por atores de diferentes campos, na disputa pelo sentido das palavras e na capacidade de midiatizar o discurso”. Entre outras pesquisas, o projeto faz uma análise do discurso em mais de cem perfis de extrema-direita, demonstrando como a educação é o principal tema usado na tentativa de sensibilizar a população contra a “ideologia de gênero”.
Uma reportagem especial de Giulliana Biaconi, jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pós-graduada em Política e Relações Internacionais e fundadora da Gênero e Número, mostra como as palavras “mulher”, “criança” e “escola” são as mais citadas entre aquelas que compõem o universo das palavras-chave nos discursos que abordam o tema da “ideologia de gênero”. Segundo Giulliana, a análise de discurso de perfis no Twitter aponta que a narrativa predominante no ataque às questões de gênero passa, primeiramente, pela educação e pela tentativa de definir o papel da mulher na sociedade, sem abordar explicitamente o feminismo, “que pouco aparece no vocabulário conservador dos tuítes”, assinala.
Um dos objetivos centrais desse ativismo conservador nas redes sociais, nas igrejas, nas escolas e em outros espaços é convencer as famílias brasileiras de que as escolas estão ideologizadas com conteúdos de gênero e sexualidade, que seriam apresentados de forma precoce e mesmo pornográfica aos estudantes. Ideias como laicidade, pluralismo e reconhecimento das diferenças são denunciadas como uma ameaça às crenças e aos valores morais e religiosos das famílias. As escolas e os professores sintonizados com a “ideologia de gênero” estariam usurpando dos pais a responsabilidade pela educação moral e sexual de crianças e adolescentes.
A reportagem cita como exemplo dessa militância conservadora nas redes sociais o perfil do procurador da República Ailton Benedito, um dos perfis que mais tuitaram ambos os termos “criança” e “escola” em um período de cinco meses da análise semântica feita pela Gênero e Número no Twitter. Ao todo, foram 82 menções a “crianças” e 11 a “escolas”. “Recorrentemente, ele tuíta também a expressão ‘ideologia de gênero’, acompanhada de termos pejorativos”. Ailton Benedito teve seu nome barrado pelo Ministério Público Federal para ocupar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Na avaliação do projeto Reino da Desinformação, ele representa a face mais radical do Brasil bolsonarista que decidiu enfrentar o “fantasma da ideologia de gênero”.
A cruzada antigênero a partir do campo da educação tem uma forte ação nos parlamentos também. Desde 2014, parlamentares conservadores vêm apresentando projetos de lei estaduais, municipais e federal baseados na ideia da “Escola sem Partido”. Em janeiro deste ano, 22 deputados federais, a maioria deles do PSL, apresentaram uma nova versão do Programa Escola sem Partido, que, caso aprovado, seria válido para todos os sistemas de ensino do país. O texto prevê, entre outras coisas, a possibilidade de os alunos gravarem as aulas e proíbe quaisquer manifestações políticas nos grêmios estudantis.
O trabalho que vem sendo desenvolvido pelo projeto Reino da Desinformação mostra com riqueza de detalhes a guerra cultural ultraconservadora que está em curso no Brasil, a estratégia e os principais protagonistas desse movimento.