OPINIÃO

Bacurau, uma declaração de guerra ao Brasil racista

Por Marco Weissheimer / Publicado em 15 de outubro de 2019

Foto: Victor Jucá

Foto: Victor Jucá

Em recente passagem por Porto Alegre, o cineasta alemão Werner Herzog falou sobre o modo como vê e faz cinema e deixou algumas sugestões de método para pensar a nossa relação com a realidade que nos cerca e com as representações que fazemos sobre ela, no cinema e na vida. A principal delas talvez tenha sido a de levar a sério e dar atenção ao que impacta a nossa imaginação e a nossa fantasia. Você deve fazer algo que impressione sua imaginação, que diga respeito à sua experiência de vida, que lhe afete de algum modo, sugeriu Herzog, afirmando que essa regra está presente em praticamente toda sua obra. “Sigo o impulso da minha fantasia, daquilo que impressiona minha imaginação. É uma questão da intensidade da visão que tenho. Nos meus filmes, tento criar um compromisso entre o espectador e o que está na tela, resultado dessa visão”, disse o cineasta.

Um dos melhores elogios que se pode fazer a um filme é a materialização desse vínculo entre o que diz respeito à imaginação e à visão do autor e o modo como isso atinge o espectador. O sucesso e a repercussão nacional e internacional de Bacurau, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, ilustram bem o sentido mais profundo da regra metodológica sugerida por Herzog. Vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cinema de Cannes, Bacurau impressiona fortemente a imaginação do espectador. No caso dos espectadores brasileiros, essa impressão pode vir acompanhada de alegria e emoção ou de desconforto e descontentamento. O filme não afeta apenas individualmente os espectadores, mas atinge também o que poderíamos chamar, na falta de uma expressão melhor, a imaginação coletiva nacional construída ao longo da história do Brasil.

Bacurau é uma alegoria, mas a realidade que o Brasil vive desafia as fronteiras entre a alegoria e a realidade. O mesmo pode ser dito em relação à história do Brasil. Aquilo que é apresentado hoje, costumeiramente, como a “história” do Brasil é, em diversos sentidos, atravessado por narrativas fantasiosas que, em vários momentos e sentidos, ocultam o que aconteceu e segue acontecendo. A história do Brasil, que ainda está para ser contada, é banhada em sangue de índios, negros, mestiços de diferentes origens, pobres de distintos recantos. Darcy Ribeiro escreveu em O povo brasileiro: “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou”.

Bacurau trata, entre outras coisas, do racismo histórico, estruturante e imensamente presente no nosso país. Os “gringos” que invadem a comunidade de Bacurau para caçar “por esporte” seus habitantes contam com o apoio logístico de um casal de brasileiros sulistas, ele, assessor de um desembargador de um Tribunal Regional Federal. Os sulistas acham que são muito mais parecidos com os estrangeiros brancos de língua inglesa do que com seus compatriotas de Bacurau. Erro trágico que lhes custará caro, mas também um recurso dos autores para mostrar a escada do racismo, onde sempre há lugar para o discriminador se tornar discriminado.

Sem entrar em detalhes, para não estragar a experiência de quem ainda não viu o filme, os bacurauenses resolvem resistir e enfrentar os invasores. E aqui surge o desconforto manifestado por alguns articulistas (inclusive do campo de esquerda), especialmente nas regiões Sudeste e Sul, com a decisão da população de Bacurau de enfrentar com armas na mão os agressores. “Como assim, agora vamos apoiar a violência?” é o argumento que se repete com variações nestes artigos. Marcos Rolim já respondeu bem essa objeção, ao comentar uma observação feita por Isabela Boscov, da revista Veja, para quem a “Lógica de Bacurau é tão desalentadora quanto a do lado oposto”. “Fiquei imaginando como seria uma matéria da jornalista se ela fosse cobrir, digamos, o Levante de Varsóvia. A lógica da revolta dos judeus, no fundo, é idêntica à do outro extremo, e tão desalentadora quanto ela: para que um lado se construa, é preciso destruir o outro lado — e com ira e violência”, escreveu Rolim, comentando o filme.

A objeção à “escolha da violência” por aqueles que estavam sendo massacrados anda de mãos dadas com um certo silêncio constrangido com a identificação do sul do Brasil como a sede nacional do racismo. Não que ele não esteja presente nas demais regiões do país, mas, não por acaso, foi aqui que um parlamentar ganhou notoriedade ao embalar índios, quilombolas, gays e lésbicas na categoria “tudo que não presta”. Em Bacurau, “tudo que não presta” faz uma declaração de guerra ao Brasil racista.

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