Ilustração: Óleo sobre tela de Corrado Giaquinto (1703–1766)/Reprodução
Ilustração: Óleo sobre tela de Corrado Giaquinto (1703–1766)/Reprodução
O mais novo resumo do que nos espera na eleição deste ano é o que fala do bem contra o mal. É a nova fala de Bolsonaro.
Foi dita na festa de lançamento da sua pré-candidatura, em Brasília, e três dias depois numa cavalgada no Rio Grande do Norte.
Nada mais contra a vacina, porque o povo quer se vacinar, mas estocadas forte no Supremo e nas urnas, que fazem parte do mal.
O que importa é convencer as pessoas de que a eleição é um duelo de gente que está com Deus contra os outros que estão com o diabo.
É a política rasa, com pretensões bíblicas, do mal que se disfarça para enganar quem quer ser enganado.
A extrema direita simplifica ainda mais o que já estava simplificado. É a tática consagrada do fascismo. Sintetizar em poucas palavras o que deve ser entendido pela maioria.
O bem contra o mal é a grande obra de Bolsonaro. Um governante incapaz de compreender questões minimamente complexas recorre a um esquema batido para reconquistar fiéis.
Em artigo recente no Estadão, o professor Eugenio Bucci, um dos mais respeitados pensadores da comunicação no Brasil, reflete sobre as simplificações que conquistam corações e mentes.
Bucci cita a jornalista americana Margaret Sullivan, estudiosa das mídias, para dizer que o truque usado por Bolsonaro e Trump – mais o turco Recep Ergodan, o húngaro Viktor Orbánm, o russo Vladimir Putin, o bielorusso Aleksandr Lukashenko e outros assemelhados – é o da síntese destruidora.
O que eles fazem é convencer as pessoas a não acreditarem em mais nada e mais ninguém, em instituições, autoridades, Congresso, Justiça, ciência, arte, educação, nada do que foi dado até aqui como civilizatório.
O que eles querem conquistar e dominar é o que Bucci define como “corações selvagens e mentes turvas”.
Bolsonaro e sua turma precisam dizer o que as pessoas em situação desconfortável ou em desalento querem ouvir. E mentem, mentem muito. E as pessoas que os escutam sabem que eles estão mentindo.
Mentem não só para os que não têm acesso à informação que os oriente. Também mentem não só aos iludidos por ignorâncias.
Mentem para a classe média que não conseguiu encarar a convivência com classes sociais ascendentes. Mentem para os ricos, os discriminadores, os racistas.
Eles precisam do apoio do que Bucci define como “falanges ressentidas”. Semear o descrédito é o que importa, desde que o disseminador de ódios, mentiras e difamações seja visto como o homem consagrado a enfrentar o que deve ser destruído. Por isso Bolsonaro se apresenta como o bem contra o mal.
A extrema direita descobriu como se comunicar com esse público, aperfeiçoando descobertas antigas. Assim, o fascismo não precisa mais de déspotas esclarecidos para se manter no poder.
Basta um Bolsonaro e mais Mamãe Falei, Kataguiri, deputado Daniel Silveira, blogueiro Allan dos Santos, Carluxo e outros, e os destruidores têm quadros suficientes para impor o que pensam no mundo real e virtual.
Sempre com o suporte do poder militar e, se possível, de um centrão vendilhão. E mesmo que uns e outros, como Kataguiri, sejam hoje dissidentes da turma original. Eles são da extrema direita.
Com o bem contra o mal, Bolsonaro promete o que está na síntese desse apelo: só ele pode destruir tudo o que não presta ou não interessa ou não serve mais. E oferecer algo em troca, mesmo que não seja nada.
Bolsonaro vai continuar batendo no Supremo, no Tribunal Superior Eleitoral e nas urnas eletrônicas, porque esses são os alvos decisivos para a tática da destruição.
Líder da retórica antissistema, o sujeito que ergue desconfianças e discórdias vai em frente porque pelo menos um terço da população acredita nele.
Quando este artigo estava sendo escrito, anunciava-se que o destruidor ordenara ao Ministério da Saúde a decretação oficial do fim da pandemia.
Os epidemiologistas e todos os especialistas da área dizem que não é a hora. Mas, se Bolsonaro determinar que a pandemia acabou, seus seguidores saberão que ele está mentindo, mas não é isso o que importa.
O que interessa é que ele corresponde às expectativas de quem prefere acreditar, sendo ou não religioso, que há um homem bom contra homens maus. Esse homem sabe quando a pandemia acaba. Mesmo como mentira.
Andando a cavalo no Rio Grande do Norte, o pregador disse:
“Cada vez mais a população entende quem está do lado do bem e quem está do lado do mal. Não é de esquerda contra direita, é de bem contra o mal. E o bem sempre venceu. E o bem vencerá. O bem está ao lado da maioria da população brasileira”.
Hoje, segundo as pesquisas, a maioria não estaria ao lado de Bolsonaro, o que complica sua tese. Mas as pessoas que acreditam em Bolsonaro não querem acreditar em pesquisas.
Muitos nem acreditam na existência de Deus ou do demônio e sabem que essa conversa de bem e do mal é a maior de todas as mentiras. Mas é o que querem ouvir e o que os consola ao lado de muitas outras mentiras.