Foto: SporTV/Reprodução
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O mundo pantanoso dos homófobos continuará explorando por um bom tempo, até cansar, a decisão de Richarlyson de revelar que é bissexual. Canalhas, fascistas e derivados se divertem com a própria canalhice.
Richarlyson só falou agora do que vinha ensaiando e adiando há muito tempo. Em maio, no programa Boleiragem, no SporTV, o ex-jogador do São Paulo fez um desabafo sobre as perseguições que sofria, sem se referir diretamente à homofobia.
Disse que o irmão Alecsandro, ex-atacante do Internacional, entrevistado do programa, era quem mais o protegia.
E o Boleiragem – apresentado pelo também ex-jogador Roger Flores –, onde geralmente prevalecem os relatos de casos engraçados, teve o que pode ter sido seu momento mais denso e emocionante.
Richarlyson disse que não teria aguentado tantos ataques se não tivesse o suporte e a proteção amorosa do irmão, que na idade adulta ele passou a considerar seu pai.
Roger Flores parecia esperar uma revelação que não veio e foi respeitoso. Agressões em que sentido? Roger preferiu não tocar no assunto.
Todos os que acompanham o futebol estavam sabendo. Só não estava quem não liga para futebol, e aí não há o que fazer. O jogador era agredido por gritos de torcedores e por ofensas nas redes sociais até parar de atuar em 2014.
Em determinado momento do programa, Alecsandro foi ao armário que há no cenário para buscar, como acontece com cada entrevistado, algum objeto relacionado com o boleiro que conta a sua vida a Roger.
Era a hora do quadro Trairagem, uma brincadeira que mexe com alguma coisa do passado que o atleta prefere esquecer.
Alecsandro encontrou uma peruca. O atacante era um careca famoso no futebol e havia feito um transplante de cabelo que quase não deu certo.
E aconteceu então a cena que, pelas circunstâncias, logo depois do relato de Richarlyson de que era perseguido, poderia municiar a bandidagem do preconceito que são só discrimina e persegue, mas também mata. Foi quando Richarlyson, provocado pelo irmão, pôs a peruca.
Os dois aproveitaram a surpresa da trairagem para desafiar os preconceituosos. Alecsandro estava sendo traíra com o irmão para afrontar os que o agrediam. Foi uma atitude atrevida, de destemor dos irmãos.
E mesmo assim tem gente perguntando, inclusive em outros programas de TV da extrema direita: mas ele não poderia ter dito antes que era bissexual?
Poderia? Jogando futebol? Será que poderia, como celebridade de um ambiente machista e muitas vezes racista e fascista? Jogador negro e bissexual?
Jogadores que conviveram com Richarlyson no São Paulo já contaram que ele chegou a pensar em se declarar bissexual quando ainda jogava. A direção do São Paulo o proibiu de tocar no assunto.
Já em 2007 sites de futebol noticiavam que a torcida organizada do São Paulo ignorava o nome do jogador, quando a escalação do time era anunciada pelo sistema de som do Estádio do Morumbi.
O locutor gritava os nomes e a torcida ovacionava cada um dos citados. Menos quando o nome anunciado era o de Richarlyson.
E torcidas de times adversários o insultavam em jogos fora do Morumbi. Por isso é que não importa se decisões íntimas são tomadas na hora ‘certa’ ou errada, mas naquela hora.
Richarlyson revelou-se bissexual no momento em que achou que deveria, agora que é comentarista do SporTV. Pronto. É isso.
O resto é julgamento de quem se acha no direito até de dizer a hora certa de alguém fazer revelações íntimas e muitas vezes dolorosas.
O relevante agora é que o cara está se revelando um baita comentarista, porque surpreende com suas observações fora da caixinha das análises repetitivas e óbvias sobre jogadores, táticas e treinadores.
A revelação de Richarlyson é também um ato de coragem inspirador de quem deseja ir em frente e enfrentar o preconceito, a violência e os assassinatos de pessoas LGBTI+.
Já é complicado, num país machista-bolsonarista-fascista, ser LGBTI+ assumido sendo ator ou atriz da Globo. É quase improvável ser declaradamente gay, trans, lésbica, bissexual jogando futebol.
Que em pouco tempo não seja mais. Richarlyson fez um gesto que é íntimo, pessoal, particular, mas é também, por se tornar público, coletivamente libertário.
Moisés Mendes é jornalista. Escreve quinzenalmente para o jornal Extra Classe.