Fotos: Agência Senado/ Reproduções
Os alemães convivem com uma dúvida permanente e perturbadora, que se renova sem piedade. Eles e todo o entorno geográfico da vizinhança se perguntam até hoje sobre o que sobrou do nazismo na alma do país.
Depois de mais de quase duas décadas de disseminação do nazismo, que esteve no poder por pelo menos 12 anos, como as crueldades e os crimes comandados por Hitler se manifestam num país assombrado pelo que já foi?
O Brasil terá de fazer essas perguntas, desde já, para que não esqueçamos o poder de destruição do bolsonarismo.
Bolsonaro destruiu relações humanas, a Amazônia, as universidades, o Estado, o patrimônio público, os espaços coletivos, as estruturas da ciência e do conhecimento.
Mas destruiu principalmente a capacidade de resistência do brasileiro. Já está consagrado que em nenhum outro período o país foi tão inerte, tão resignado diante do destino premeditado por Bolsonaro.
Nem na ditadura os brasileiros foram tão acovardados e submetidos ao jugo de um tirano, porque na ditadura havia a imposição militar, e durante o regime implantado em 64 o país teve ao menos crescimento e perspectiva de um projeto nacional.
Hoje, o projeto é o da destruição. Os militares de 64 perseguiram, cassaram e mataram muitos brasileiros (mais de 400 assassinados e desaparecidos), mas enfrentaram a resistência de sindicatos, Igreja, universidades, estudantes, jornalistas e entidades que se somaram ao combate ao fascismo.
Bolsonaro destruiu a capacidade de articulação política do país. O Brasil é hoje, como a Alemanha sob domínio nazista e a França ocupada pelos soldados de Hitler, um país de colaboracionistas, que podem não ser maioria, mas são hegemônicos.
Os que não colaboram com a extrema direita no poder fazem parte de uma maioria que discorda, mas não reage.
Esse Brasil acovardado irá demorar a compreender a grandeza e a bravura do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, perseguidos, torturados, esquartejados e queimados por bandidos da Amazônia.
O Brasil que se diz indignado, em manifestações virtuais da classe média branca, não expressa nada além de indignação. E indignação, numa hora dessas, sem nada que a complemente, vale um centavo furado.
Indignação por indignação não significa nada como expressão de resistência, mas apenas um sentimento mesquinho de autocomiseração. O brasileiro tem pena de si mesmo, pela sua condição de povo inerte.
As exceções são as exceções e falar delas é subestimar na capacidade dos que compreendem o que vivemos. Exceções de bravura não nos consolam.
O massacre cotidiano na Amazônia, quando a grande maioria dos assassinados é invisível, repete-se nas periferias brasileiras.
Matam, esquartejam e queimam pobres e negros todos os dias. O bolsonarismo submete o país a chacinas diárias. Matam de morte matada a tiros e matam de fome, de miséria, de desencanto e de frio.
Nazismo no espelho
Mas o Brasil bandido de Bolsonaro terá em algum momento que se olhar no espelho, como a Alemanha de Hitler faz ainda hoje, para que não volte a se enxergar como um país totalmente degradado.
Bolsonaro fez mais do que disseminar ódios, mentiras, armas, sabotagens, destruição de florestas e dos seus povos. Bolsonaro, os milicianos e os militares anestesiaram e acovardaram o Brasil.
Grileiros, desmatadores, garimpeiros, mineradores, latifundiários, banqueiros, grandes empresários sonegadores, a imprensa golpista, todos eles são cúmplices do Brasil que Bolsonaro impôs aos resignados. E todos os que se submetem a Bolsonaro são cúmplices dessa imposição. Por engajamento e por omissão.
Assassinaram Dom e Bruno e continuam assassinando, na Amazônia e nas vilas, sem que a repercussão seja a mesma, porque não haverá sempre um inglês para que a infâmia tenha repercussão internacional.
É a nossa realidade. Vivemos, desde o golpe de 2016 e com a eleição de Bolsonaro em 2018, sob a nossa versão de nazismo que persegue negros, índios, gays, trans, pobres, mulheres e crianças.
Os alemães só foram libertados do nazismo pelo fim da guerra, quando os russos ocuparam Berlim. A única guerra que pode nos salvar é a das batalhas internas de cada um de nós contra as nossas indiferenças, as nossas alienações e as nossas covardias.
Moisés Mendes é jornalista. Escreve quinzenalmente para o jornal Extra Classe.