O papel do Banco Central na geração da dívida pública ilegítima
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
O Banco Central foi criado em 1964, no início do período ditatorial, e desde então sua atuação tem sido marcada por diversos episódios que fizeram com que dívidas públicas (externa e interna) fossem geradas sem contrapartida ou benefício algum ao país, enquanto bancos nacionais e internacionais aumentavam seus ganhos e lucros.
Em 1967, as taxas de juros internas praticadas no Brasil aumentavam a patamares estratosféricos, sob a falsa desculpa de “conter inflação”, mas as taxas praticadas no exterior se mantinham reduzidas, como sempre.
Nesse contexto, o Banco Central publicou a Resolução 63/1967, autorizando a contratação direta de empréstimos no exterior pelos bancos que operavam no país, os denominados “Empréstimos em Moeda”, tomados junto a outros bancos privados internacionais.
Devido ao grande diferencial entre as taxas de juros internas e externas, os bancos que atuavam no Brasil passaram a se endividar no exterior, em moeda estrangeira e elevados montantes, e emprestavam os recursos em moeda nacional, onde os juros alcançavam taxas elevadíssimas, obtendo lucros estratosféricos.
Essa parcela dos “Empréstimos em Moeda” apresentou crescimento exponencial e correspondia a cerca de 80% da dívida externa brasileira, como mostra o gráfico abaixo.
Foto: Banco Central
Foto: Banco Central
Credores ditavam as regras
Os mesmos bancos privados internacionais, que eram os “credores” desse tipo de dívida externa, controlavam as instituições (FED e Associação de Bancos de Londres), que ditavam as taxas de juros internacionais (Prime e Libor) aplicadas a esses empréstimos.
A partir de 1979, tais instituições passaram a elevar essas taxas de juros, que saltaram de cerca de 5% ao ano para mais de 20% ao ano, levando o Brasil e inúmeros outros países à chamada crise da dívida externa no início dos anos 80.
Essa crise foi nitidamente provocada por essa alta unilateral dos juros, agravada pela redução do volume de moeda estrangeira que recebíamos com as exportações, devido à queda brutal dos preços das comodities na mesma época.
Nenhum país questionou a tremenda ilegalidade decorrente da alta unilateral dos juros, como brilhantemente descreve a Doutrina Espeche.
O crescimento exponencial da dívida externa não tinha contrapartida real, pois decorreu dessa elevação das taxas de juros e da incidência de juros sobre juros.
A interferência do FMI na dívida
A crise abriu espaço para a interferência do FMI a partir de 1983 que, entre as diversas exigências nocivas, impôs o refinanciamento dessa relevante parcela da dívida externa junto a bancos privados internacionais.
Foi nesse refinanciamento que o Banco Central assumiu o papel de devedor dessa imensa parcela da dívida externa – tanto a parte pública como a privada (dívida de bancos e empresas), em uma série de pacotes de refinanciamentos feitos sucessivamente em 1983, 1984, 1986 e 1988 junto a bancos privados internacionais.
Além da ilegalidade por assumir o papel de devedor até de dívidas privadas perante a banca internacional, o Banco Central aceitou que tais acordos fossem regidos pelas leis de Nova York, em flagrante desrespeito à Constituição Federal.
O senador Severo Gomes teve acesso a parte desses acordos e seu relatório revela quão infames e nulas foram essas negociações que provocaram, mais uma vez, aumento exponencial do estoque da dívida externa sem contrapartida real, pois o montante estava inflado pelas taxas de juros e por dívidas privadas, além de comissões onerosíssimas e ilegítimas.
Acordos ilegítimos e novos títulos
Há contundentes indícios e evidências de que essa parcela da dívida externa junto a bancos privados internacionais teria prescrito em 1992, fato que foi ignorado pelo Banco Central e demais autoridades, que passaram a negociar a transformação daqueles acordos ilegítimos em novos títulos da dívida externa brasileira.
Essa negociação foi concluída em 1994, em Luxemburgo, paraíso fiscal, e se denominou Plano Brady, tendo a comissão de negociação sido chefiada por Pedro Malan e contou com a participação de Armínio Fraga, Murilo Portugal, e mais dezenas de técnicos.
Os títulos resultantes dessa negociação eram tão podres que estes não poderiam ser negociados em nenhuma bolsa de valores mundo afora.
Essa parcela relevante da dívida externa deveria ter sido anulada, pois vários bancos já haviam, inclusive, dado baixa desse “crédito” em suas respectivas contabilidades.
Apesar disso, o governo brasileiro passou a dar três destinações a esses títulos podres:
- parte foi transformada em novos títulos da dívida externa (cada vez aparentemente mais institucionalizados),
- parte foi transformada em dívida interna (dando um pontapé nessa dívida que remunerava a taxas de juros próximas de 50% ao ano naquele início do Plano Real, além de diversas negociações posteriores que também fizeram essa transformação),
- e outra parte foi aceita como moeda de privatização (por exemplo, cerca de metade da Vale do Rio Doce foi paga com essa “moeda”)!
Crescimento da dívida sem contrapartida
A partir daí, a dívida interna passou a crescer exponencialmente, sem contrapartida alguma em investimentos, como declarou o Tribunal de Contas da União (TCU) ao Senado, em 2019, que nenhuma despesa orçamentária classificada como investimentos foi custeada com recursos de emissão de títulos da dívida pública!
Ora, se a dívida interna federal, que alcança o patamar de cerca de R$ 8 trilhões, não tem contrapartida em investimentos, como declarou o TCU, para que ela tem servido???
A Auditoria Cidadã da Dívida tem denunciado, em inúmeros documentos e pronunciamentos, que o crescimento da dívida interna federal se deve principalmente à aplicação de juros altos, juros sobre juros e demais mecanismos que geram dívida sem contrapartida alguma, em especial a Bolsa-Banqueiro operada pelo Banco Central, a assunção de seus vultosos prejuízos, entre outros resumidos na recente Cartilha lançada pelo movimento.
Esse breve histórico ilustra a imensa responsabilidade da direção do Banco Central na formação e crescimento dessa dívida pública ilegítima (externa e interna), que tem sido usada como justificativa para inúmeras medidas macroeconômicas nocivas que afetam a vida de todas as pessoas e prejudicam o funcionamento da economia do país.
Essa chamada dívida tem sido um instrumento de transferência de recursos públicos para bancos e grandes rentistas, e está por trás do teto de gastos sociais (que segue presente no arcabouço fiscal); da política de resultado primário (que suprime investimentos sociais para que sobrem mais recursos para as despesas financeiras com a dívida); sucessivas contrarreformas; privatizações etc.
Tudo isso evidencia a necessidade urgente de cumprir a Constituição e realizar auditoria integral dessa dívida, com participação social.
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.