OPINIÃO

Economia argentina chega ao fundo do poço por não enfrentar o Sistema da Dívida

Por Maria Lucia Fattorelli / Publicado em 15 de dezembro de 2023
Economia argentina chega ao fundo do poço por não enfrentar o Sistema da Dívida

Foto: Martín Zabala/Xinhua

“Todo esse sacrifício social e econômico está condicionado pela dívida pública argentina, uma herança maldita desde a década de 80, e que com Milei absorverá todos os recursos “economizados” com esse pacote de maldades imposto ao povo argentino”

Foto: Martín Zabala/Xinhua

Em seu início de governo, Javier Milei, presidente da Argentina, anunciou drásticas medidas econômicas, que foram duramente criticadas pelo economista Julio Gambina. Milei avisou ainda que elas são preliminares, ou seja, virão outras.

Dentre as medidas anunciadas, sobressai a enorme desvalorização do câmbio (da ordem de 120%), que significa um imenso lucro para as grandes corporações exportadoras que atuam na Argentina, enquanto prejudica de forma grave o conjunto da sociedade, principalmente os mais pobres, tal como as demais medidas de corte de gastos, contratos e transferências às províncias.

Todo esse sacrifício social e econômico está condicionado pela dívida pública argentina, uma herança maldita desde a década de 80, e que absorverá todos os recursos “economizados” com esse pacote de maldades imposto ao povo argentino.

As medidas de Milei foram elogiadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), principais agentes responsáveis pela desastrosa administração da dívida pública argentina desde a década de 1980.

Oportunidade perdida

A dívida argentina contraída durante a ditadura, entre 1976 e 1982, chegou a ser condenada por meio de sentença judicial, como mencionamos resumidamente em uma das publicações da Auditoria Cidadã da Dívida:

Desde os anos 1970, a dívida argentina serviu ao financiamento de governos ditatoriais, foi utilizada como instrumento meramente financeiro e se construiu mediante abusos cometidos principalmente pelos bancos privados internacionais.

Em 1982, contudo, por iniciativa do jornalista Alejandro Olmos, teve início uma denúncia penal, baseada em notícias e demais materiais jornalísticos, que tramitou por dezoito anos no Judiciário argentino. Durante o processo, autoridades judiciais determinaram que os órgãos que manejam o endividamento fornecessem cópias dos contratos ao denunciante, o que permitiu a realização de análises e perícias técnicas.

Em 2000, face aos aspectos criminais do endividamento e às fraudes configuradas no seu uso, uma sentença judicial declarou que a dívida contraída entre 1976 e 1982, período da ditadura argentina, havia sido excessiva e prejudicial, sem justificativa econômica, financeira ou administrativa. Essa histórica sentença também determinou que os representantes do Estado que contraíram dívidas ilegítimas deveriam ser responsabilizados pelas operações fraudulentas.

Após o reconhecimento, outras ações, ainda em trâmite, foram ajuizadas para buscar a corresponsabilização do FMI pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura e também para reconhecer a ilegitimidade dos débitos posteriores ao período ditatorial, uma vez que, com o Plano Brady boa parte da dívida da ditadura, já considerada ilegítima, foi objeto de transformação em títulos de dívida externa, cabendo lembrar que processo idêntico ocorreu no Equador, no Brasil e em cerca de mais vinte países.

Em vez de rever o processo desde o período condenado por sentença judicial e os impactos dela decorrentes, em 2001 o governo argentino se entregou mais uma vez às exigências do FMI, agravando cada vez mais o processo de endividamento e a subserviência às medidas econômicas impostas, sempre contrárias aos interesses do povo argentino, que levaram à grave situação em que o país se encontra.

Aquela dívida odiosa contraída durante a ditadura militar, relatada em livro pelo filho do autor da ação judicial, poderia ter sido declarada nula, mas, por imposição do FMI, a partir de 1983 foi transformada em dívida sob obrigação do Banco Central, que assumiu o papel de “devedor” em acordos internacionais inconstitucionais firmados em Nova York, exatamente como ocorreu no Brasil, no Equador e em vários outros países que também foram vítimas daquela “crise da dívida” de 1982.

A partir de 1983, o FMI passou a reger a economia de praticamente todos os países latino-americanos, e, na década seguinte, a dívida objeto daqueles acordos internacionais inconstitucionais foi transformada em títulos de dívida externa no chamado Plano Brady, em Luxemburgo, outra imposição do FMI aos nossos países, eternizando uma dívida completamente nula e, ademais, suspeita de prescrição.

Sucessivos processos de troca e renegociação se seguiram, sempre acompanhados de exigências de privatização do patrimônio estatal, contrarreformas laborais; da Previdência; administrativa, para reduzir o tamanho do Estado, além da adoção de política monetária suicida, levando essa “dívida” a patamares completamente insustentáveis.

E vejam no que deu: eleição de Milei, uma pessoa extremamente radical e completamente comprometida com os interesses do mercado e privilégios do Sistema da Dívida, disposto a fazer todo e qualquer sacrifício para garantir esses privilégios, como já demonstrou nos primeiros dias de seu governo.

O enfrentamento do Sistema da Dívida por meio de uma auditoria integral, como fez o Equador, adotando-se as medidas necessárias para anulação da dívida já condenada judicialmente, teria evitado que a economia argentina chegasse ao fundo do poço. É necessário e urgente aprender com a história, corrigir rumos e avançar.

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.

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