Insurreições da velhice feminista
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O envelhecimento na contemporaneidade é considerado um fenômeno tipicamente feminino, denominado de “feminização da velhice”, dada a prevalência de mulheres nesta faixa etária. Embora presente em outros países, no Brasil esta situação apresenta inusitadas características: além de um crescente “superávit feminino” na população idosa e de um ritmo de envelhecimento acima da média mundial, há uma estimativa de que na próxima década, pela primeira vez, teremos uma proporção maior de velhos em relação a crianças e adolescentes.
De um lado, tais cenários provocam deslocamentos no imaginário brasileiro pois estamos nos tornando um país jovem de cabelos brancos, ao mesmo tempo que subsiste em nossa cultura uma representação social da velhice centrada em atributos negativos como a decadência e a inutilidade. No caso das mulheres brasileiras há evidências de dificuldades adicionais no envelhecimento, pois o modelo social de feminilidade predominante no Brasil está historicamente associado à beleza juvenil e capacidade reprodutiva.
O que podemos esperar desta estimativa de maior longevidade em um contexto ainda fortemente patriarcal? Vários estudos nos apontam uma perspectiva de dupla exclusão – ser mulher e velha, o que pode levar a uma maior vulnerabilidade à gerofobia, ou seja, aos preconceitos e estereótipos em relação às pessoas idosas. Isto nos leva a supor de que faz diferença envelhecer em um país reconhecido como jovem e de que existem distintos modos de envelhecimento entre homens e mulheres, bem como entre mulheres feministas e não feministas.
A existência de uma política de regimes e destinos corporais diferenciada para homens e mulheres já foi apontada pela escritora americana Susan Sontag nos anos 70, quando ela identificou um “duplo padrão do envelhecimento” para os homens (“homem jovem” e “homem maduro”) e apenas um para as mulheres (“mulher jovem”).
Em uma cultura que coloca a juventude como um ideal social, a valorização da estética feminina juvenil se encontra ainda mais exarcebada e tem alimentado uma engrenagem mercadológica do rejuvenescimento, onde o corpo feminino que deixou de se submeter à antiga servidão doméstica agora é subjugado às demandas do tripé juventude-beleza-magreza. O enredamento das mulheres no circuito de dietas, moderadores de apetite, botox, lifting, cirurgias plásticas, academias e de outras estratégias de juvenilização reitera a ideia da socióloga peruana Liuba Kogan de que os corpos femininos se colocam como “telas”, ou seja, para serem olhados, examinados e, consequentemente, julgados.
Ressalve-se, contudo, que a preocupação com a beleza não é antifeminista. Portanto, há evidências de que a velha insígnia feminista – “nosso corpo nos pertence” – se atualiza em nossos dias no acolhimento de uma corporalidade senil que permite evidenciar as marcas do tempo, como por exemplo, as rugas e os cabelos brancos. Uma velhice sem Photoshop. Assim, seria um equívoco analisar tais gestos das mulheres idosas como desistência de serem vistas como objetos de desejo, uma vez que muitas não se sentem fora do circuito de sedução. Tais comportamentos sugerem, antes de tudo, uma certa emancipação dos imperativos juvenis, sinalizando que a velhice pode trazer às feministas uma posição privilegiada para problematizar outras expectativas sociais.
Segundo a ativista francesa Thérèse Clerc, a velhice é um momento propício para desafiar a organização social e seus binarismos, tais como autonomia/dependência.
Nesse sentido, observa-se que as feministas vêm construindo trajetórias que levam à revisão de um outro marcador da velhice, a chamada “pirâmide da solidão”, relacionada à alta proporção de mulheres idosas morando sozinhas ou sem a presença de um companheiro. Enquanto cresce o número de casas geriátricas que segregam a velhice, surgem experiências inovadoras, como a Maison des Babayagas, na França, a partir de projetos residenciais autogestionados, baseados na solidariedade feminina, reduzindo a sua dependência da família e do Estado.
Destacam-se ainda os efeitos resultantes da luta feminista pela emancipação financeira das mulheres, que agenciou a melhoria do seu nível de escolaridade em vários estratos sociais, bem como o crescimento feminino na população economicamente ativa. Hoje, tais situações favorecem que as mulheres vivenciem a velhice sem se constituírem em “pesos” ou “fardos”, ao mesmo tempo que conquistam menor aderência aos imperativos da sociedade de desempenho, como demonstra os depoimentos colhidos na extensa pesquisa realizada pela antropóloga brasileira Mirian Goldenberg: “não é preciso provar mais nada”, “consigo tirar melhor partido da experiência”; “não entro de sola em tudo”; “sinto uma certa serenidade”; “tenho mais tempo para a contemplação e para as pequenas coisas”; “cuido mais de mim e não vivo exclusivamente em função dos outros”; “é mais fácil perdoar”; “a vida parece que ficou mais leve”; “é a primeira vez que eu posso ser eu mesma”.
Embora esses relatos tenham um inequívoco viés classista, é interessante observar que eles contrastam muito com outros achados deste levantamento, como no caso do universo masculino, com seus sinais de esgotamento pela aceleração atrás de dinheiro, bens, prestígio ou conhecimento; ou mesmo da extrema insatisfação referida pelas mulheres na faixa etária dos 40-50 anos, associada às exigências de conciliar inúmeros papeis que são, na maior parte das vezes, irreconciliáveis.
Em síntese, as feministas estão construindo um novo modo de subjetivação na velhice que pode servir como referência para outras mulheres e também para os homens: menor investimento nos papeis sociais e maior conquista do tempo como um bem valioso. Como refere Golbenberg, esta mudança de foco é uma verdadeira revolução.
De um modo geral, essa nova biografia escrita pelas “idosas desejantes” demonstra que as ideias sobre a velhice envelheceram. Precisamos ir além dos velhos padrões de envelhecimento feminino, assim como é necessário ampliar a pauta feminista para além das clássicas reivindicações focadas na liberdade sexual, no controle da fecundidade ou nas condições igualitárias no trabalho e na representação política. E que venham mais “fadas”, “bruxas” e “feiticeiras”, velhas e poderosas em seus mil disfarces, polinizando insurreições em nosso cotidiano…