Imagem: Reprodução/ Museo del Prado, Madri/ Domínio Público
No noroeste da China, há uma cidade chamada Harbin, onde vivem 11 milhões de pessoas. Faz alguns dias, após a pandemia ter sido controlada no país, a cidade descobriu um novo surto da Covid-19. Foi então que o mundo ouviu falar do Sr. Chen, 87 anos, que foi identificado como um “supercontagiador”.
Ele foi infectado em um jantar com amigos de seus filhos. Depois disso, ainda assintomático, o Sr. Chen infectou outras 78 pessoas. Pelo menos duas pessoas para as quais ele transmitiu o vírus foram encontradas em outras cidades no espaço de alguns dias. O caso do Sr. Chen mostra que basta um indivíduo com contatos para que uma onda de contaminações se dissemine exponencialmente.
Lembro do caso Chen cada vez que vejo cenas nos meios de comunicação que mostram aglomerações de pessoas. No momento em que escrevo esse texto (27 de maio) grande parte dos negócios voltaram a funcionar no Rio Grande do Sul e em vários estados. Há muita gente na rua e os mecanismos de distanciamento social parecem se diluir.
A pandemia foi controlada? Nossos indicadores evidenciam redução da curva de contágios e mortes? Não. Todos os indicadores mostram uma curva ascendente. Se for assim, então, quando você estiver lendo este texto, é provável que as coisas tenham piorado muito.
“A experiência internacional mostra que a testagem em massa, com o isolamento de casos confirmados e dos possíveis casos, é decisiva para conter o vírus e salvar milhares de vidas em cada país”.
Vivemos sob equilíbrio precário. A vida é, ela própria, um improvável equilíbrio. Em meio a uma pandemia, entretanto, tudo o que antes parecia sólido, se desmancha no ar. O vírus se espalha com muita facilidade pelas coisas e pelo ar e entra pelos sete buracos de nossa cabeça.
Podemos, sem suspeitar, carregá-lo para dentro de nossas casas, nas solas dos sapatos. O vírus é traiçoeiro, se esconde nas chaves, nas maçanetas, sob as unhas, nos cabelos. Em espaços fechados e frequentados por muitas pessoas, as chances de contaminação aumentam muito.
Seria preciso que todas as pessoas com sintomas fossem imediatamente testadas e que, uma vez confirmado o contágio, todos os contatos delas no intervalo médio de infecção fossem rastreados, testados e isolados e, assim, sucessivamente, para toda a rede de contatos dos que testarem positivo.
A experiência internacional mostra que a testagem em massa, com o isolamento de casos confirmados e dos possíveis casos, é decisiva para conter o vírus e salvar milhares de vidas em cada país.
O Brasil teve tempo suficiente para se preparar para a pandemia. Teve tempo, mas não teve governo. A perspectiva de Bolsonaro e do seu qualificadíssimo quadro de ministros e apoiadores é a da necropolítica debatida no já famoso ensaio do professor camaronense Achille Mbembe.
Governar é, para essa gente, escolher quem merece viver e quem é “matável”. Só por isso, as armas são tão importantes e simbólicas; só por isso, a excludente de ilicitude é central e há na base fascista em formação no Brasil atos públicos com caixões e dança de zumbis.
Como até as pedras sabem, o presidente se preocupa em proteger sua família e seu mandato. Quanto ao resto, sua resposta resume-se a um “E daí?”. Desde o início, a figura mortífera desdenha da pandemia (“gripezinha”, “exagero”, “invenção da imprensa” etc.), negando que estivéssemos diante de um problema real. O Brasil não teve, por isso, gestão nacional e centralizada da crise.
Nossas fronteiras permaneceram abertas, não há testagens efetivas, o que significa que milhares de Chans não sintomáticos estão por perto, circulando amplamente. Alguns deles fazem carreatas para a volta ao trabalho e se enroscam na bandeira do Brasil, contaminando-a com o vírus da intolerância e do fascismo. Sim, “existe um povo que a bandeira empresta para cobrir tanta infâmia e covardia”!
Enquanto isso, a peste segue enlutando milhares de famílias que não podem sequer velar seus mortos. Quantos ainda irão morrer? 60 mil, 80 mil, 150 mil? Para muitos, tanto faz, contanto que as vítimas não sejam os seus. Descobre-se, assim, que o “E daí?” do presidente, cuja fala se aproxima de um relincho, é, na verdade, um eco.
A expressão reverbera, desde uma posição central do Poder, o grito de morte lançado contra os índios e os negros escravizados; o juramento de dor e domínio feito pelos séculos às mulheres e a inclemência eterna contra os pobres e os humildes. A indiferença das nossas elites empresariais, que elegeram Bolsonaro e que, até hoje, financiam o “gabinete do ódio”, é a mesma que pende da mão dos feitores.
Pior do que isso é que, para além da indiferença, há o fascínio pela morte e um desejo aberto, compartilhado pela necropolítica como ameaça crescente, de extermínio. Tudo em nome da Pátria, da Família e de Deus, claro. A democracia brasileira precisa impedir que os jagunços da Pátria, a família da Casa Grande e o deus do Führer se encontrem; antes que seja tarde demais.
* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe