Fotos: Reprodução Wikipedia
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Algumas dúvidas históricas ficarão para sempre sem resposta, e essa é uma das mais dramáticas interrogações da humanidade: até quando os alemães suportariam Hitler, se ele não tivesse sido cercado pelos russos e derrotado pelos inimigos externos?
É o constrangimento que um país carrega como fardo moral. O imobilismo que impede a resistência a um déspota pode durar décadas.
É possível manter uma aberração humana no poder pela combinação de apoio explícito, de tolerância, de medo e de omissões, em circunstâncias em que muitas vezes quase todos os sentimentos se misturam.
Sim, essa introdução é para que falemos de Bolsonaro. Os apoiadores dirão que ele não é um Hitler. Os tolerantes podem afirmar que nada do que ele faz está muito acima do que seria normal e que, enfim, ele (o tolerante) está bem de vida durante o governo de Bolsonaro.
Os temerosos preferem não emitir opinião, e os omissos têm sempre a desculpa de que nada do que acontece “na política” é com eles. Os omissos se consideram a parte “neutra” que acaba por ratificar, pela omissão, a realidade imposta pelos outros.
O contingente ideológico e de apoio incondicional a Bolsonaro é calculado ao redor de 15%. Mas são agregados a esse núcleo todos os que, por tolerância, medo ou omissão, de alguma forma sustentam sua permanência no poder, por mais precária que seja.
E a pergunta que se faz hoje é a mesma que os alemães não têm mais a chance de responder: por quanto tempo a sociedade brasileira aceitará o comando, os desmandos e os crimes de Bolsonaro?
A tentativa de resposta mais usual perdeu sentido no caso brasileiro. É a resposta que se baseia no caso Bush x Clinton e vem sendo banalizada. As pessoas querem ser lideradas não por moralistas, nem por vencedores de guerras, mas por quem seja capaz de melhorar suas vidas.
Bush havia vencido a Guerra do Golfo, era herói americano, mas a população queria emprego e renda. Clinton, na oposição, venceu a eleição de 1992, porque criou expectativas que Bush não conseguia produzir para um segundo mandato.
O marqueteiro do democrata, James Carville, soletrou, antes da vitória, a frase que todos repetem sem parar: “É a economia, estúpido”.
O americano médio apostou que Clinton resolveria os problemas de produção e emprego. Durante o segundo mandato, o democrata envolveu-se sexualmente com a estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky.
Foi ameaçado de impeachment, mas ficou até o fim e teve a melhor aprovação de um presidente. Porque a vida estava boa para a maioria.
E a frase voltou a ser repetida, em reposta aos que achavam que Clinton era um presidente imoral. O povo não queria saber de seu romance com Monica Lewinsky, mas da economia.
O brasileiro é liderado por um presidente imoral, que rejeita a ciência, refugou vacinas, não usa máscara, contrariou as medidas de contenção da pandemia, ataca índios, negros e gays, ameaça ministros do Supremo, é conivente com a corrupção no Ministério da Saúde e indiferente às mortes na pandemia.
Bolsonaro seria então sustentado pela gestão da economia, estúpido? Não. Bolsonaro destruiu a economia e os empregos, destrói a Amazônia e ameaça destruir os serviços públicos. Bolsonaro destruiu a autoestima do brasileiro.
Mas tem o consentimento de pelo menos um terço da população para que siga em frente. Descobrimos que, de cada 10 brasileiros, pelo menos três são coniventes com os desatinos de Bolsonaro.
Não se trata mais de tentar medir os limites do próprio Bolsonaro, mas de quem permite que Bolsonaro continue governando. Os limites a serem avaliados são os dos brasileiros que sustentam Bolsonaro politicamente.
Há mais do que uma acomodação em relação à falta de compostura, de humanismo e de respeito pelo interesse coletivo.
Há uma cumplicidade com o autor de atos e fatos caracterizados como criminosos. Esses números a seguir já foram muito divulgados, mas vale a pena relembrá-los.
O nazismo ficou 12 anos no poder. Franco dominou a Espanha por 36 anos. A ditadura no Brasil impôs cassações, perseguições e assassinatos por 21 anos.
O salazarismo se prolongou em Portugal por 41 anos. Mussolini assombrou a Itália por 21 anos e o pinochetismo cometeu crimes por 17 anos no Chile.
Bolsonaro tem apenas dois anos e meio de governo. Parece pouco, mas é muito. Ele é a produção mais grotesca da democracia brasileira.
Mas seus aliados dizem que Bolsonaro não pode ser comparado a nenhum dos citados acima, que se impuseram pelo terror, pelo poderio militar e pelos conluios com as elites.
Bolsonaro seria um caso à parte, uma invenção verde-amarela capaz de destruir a democracia, as relações humanas, a confiança, as florestas, mas sempre com o apoio de um terço da população que pode estar se sentindo bem econômica e financeiramente.
Mas seria só isso? O apoio a Bolsonaro seria sustentado apenas por interesses econômicos de empresários, do agronegócio, de grileiros, banqueiros e de gente comum e até mesmo dos pobres misturados aos interesses de gente poderosa?
Certamente não. Os limites de Bolsonaro são estabelecidos pelos mesmos limites de quem se mantém ao lado de Bolsonaro, para muito além das questões da economia.
É pior, muito pior do que a situação de quem enfrentou ditaduras. Esse é o dilema dos brasileiros hoje: qual é o nosso limite? Qual é o seu limite?
Moisés Mendes é jornalista. Escreve quinzenalmente para o Extra Classe