POLÍTICA

Ciência, ética e sustentabilidade

Marcel Bursztyn / Publicado em 28 de agosto de 2001

No limiar do século XXI, diante de um quadro de marcantes desafios a serem enfrentados, de problemas não resolvidos, de obstáculos criados pela própria ação do Homem, o papel da ciência é posto em evidência em todos os balanços e análises prospectivas. Mesmo não sendo exatamente o fim de uma era civilizatória ou de um grande ciclo econômico ou tecnológico, a ocasião – virada de século, de milênio – instiga reflexões sobre as grandes realizações e pendências do período que se encerra. Aliás, assim o foi também ao final do século XIX. Naquela época, os analistas e pensadores vislumbravam um futuro promissor para a humanidade, tendo em vista os elementos e realizações que marcavam a realidade que vivenciavam: uma ampliação notável dos mecanismos de proteção social (políticas públicas de saúde, educação e previdência); uma extensão dos direitos civis e de sufrágio, incorporando parcelas da população até então marginalizadas da cidadania; enfim, um período de paz e prosperidade.

É evidente que o balanço do final do século XX revela uma grande frustração e acena com uma constrangedora pauta de pendências a serem encaradas.

O pessimismo geral em relação ao futuro guarda estreita relação com o crescente grau de consciência de que a busca do progresso, que se anunciava como vetor da construção de uma utopia de bem-estar e felicidade, revelou-se como ameaça.

Nesse sentido, os recados que o século XX deixa para o seguinte, em termos do papel da ciência e da tecnologia, constituem um apelo por mudanças de conduta, resultado de pelo menos cinco categorias de impasses:

– A consciência das possibilidades reais de que a humanidade possa se auto-destruir, pelo uso de seus próprios engenhos (bombas, mudanças climáticas, degradação das condições ambientais).

– A consciência da finitude dos recursos naturais (a escassez de água é apenas a ponta de um grande iceberg).

– A consciência de que é preciso agir com cautela e considerar os aspectos éticos da produção de conhecimentos científicos e, sobretudo, do desenvolvimento de tecnologias (a síndrome do aprendiz de feiticeiro).

– A consciência de que mesmo não tendo resolvido a necessária solidariedade entre grupos sociais e povos, é preciso que se considere também o princípio da solidariedade em relação a futuras gerações (a ética da sustentabilidade).
– A consciência de que, na medida em que nossas sociedades vão ficando mais complexas, é preciso mais ação reguladora, que normalmente se dá pelo poder público; hoje, com a crise do Estado, a regulação deve se valer de novas regulamentações e de uma crescente contratualização entre atores sociais (códigos de conduta, sistemas de certificação).

Entretanto, se por um lado há fortes elementos que inspiram pessimismo, é relevante, por outro lado, assinalar aspectos que podem ser vistos como sinais de que há espaço para otimismo:

– a bomba demográfica foi desmontada;

– fim da guerra fria reduziu a corrida armamentista; e

– as crises energética e de esgotamento de certos recursos naturais estimulou o desenvolvimento de processos produtivos menos intensivos e perdulários no uso de matérias-primas e energia.

Para entendermos as lições deixadas pelo século XX para o XXI, é relevante buscarmos lições na história, como base para, a partir do conhecimento dos impasses atuais, traçarmos linhas de conduta das atividades de produção de conhecimentos que estejam em sintonia com um horizonte civilizatório sustentável.

A relação entre a ciência, as condicionantes éticas de sua produção e uso e o imperativo da conciliação da busca de melhores condições materiais de subsistência com a necessidade de um desenvolvimento que seja sustentável é o desafio expresso na Agenda 21, consenso político formal sobre o que é para ser feito e como devemos proceder, no novo século.

Na Universidade contemporânea, este desafio tem se confrontado com um modus operandi que nasceu e foi se desenvolvendo em conformidade com os paradigmas que marcaram nossa era, a do industrialismo: produtivismo, hegemonia da ciência sobre a natureza, especialização e disciplinaridade.

Diante de tal impasse, a comunidade científica interessada na prática interdisciplinar do ensino e da pesquisa voltados ao Meio Ambiente e Desenvolvimento se depara com o seguinte desafio: fazer com que seja reconhecida a relevância, validar os esforços e legitimar os espaços de trabalho, no interior do tecido universitário e frente às agências de apoio, fomento e avaliação.

Mas como operar esta estratégia, diante das dificuldades burocráticas, culturais e materiais?

A resposta a esta questão passa por pelo menos quatro categorias de consideração:

– É preciso deixar claro que os espaços de interdisciplinaridade não devem ser vistos como concorrentes em relação aos departamentos: são complementares.

– Há que se romper com preconceitos especialistas: a visão generalista e integradora não é uma qualidade menor; é um atributo necessário ao enfrentamento de problemas complexos.

– É relevante instituir instrumentos de avaliação e de apoio que sejam flexíveis e permeáveis às características dos enfoques interdisciplinares.

– É fundamental que espaços interdisciplinares sirvam de foco às reflexões de fundo sobre o desenvolvimento da ciência e da tecnologia (tais como a transgenia e a bioética). E, aqui, um desafio particular se apresenta: mesmo tendo sido um avanço em termos de democratização do processo decisório, o “julgamento dos pares” traz, em si, o risco da cumplicidade e da falta de visão crítica: agora, temos de pensar também no “julgamento dos ímpares”.

Temos que buscar a reflexão e o debate sobre os rumos da organização da produção de conhecimentos científicos e tecnológicos, diante dos desafios éticos e operacionais que emergem do imperativo de se buscar um desenvolvimento que seja sustentável em todas as dimensões (econômica, social, político-institucional, cultural, ecológica, territorial).

*Marcel Bursztyn, Nascido no Rio de Janeiro, RJ, em 1951, é graduado em Economia (1973) e mestre em Planejamento Urbano e Regional (1976) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na University of Endinburgh, Escócia, obteve o Diploma in Planning Studies ( 1977). É doutor em Desenvolvimento Econômico e Social pela Univeersité de Paris I (Sorbonne), 1982, e em Ciências Econômicas pela Université de Picarrdie, na França, 1988. Foi professor das universidades federais do Rio de Janeiro e da Paraíba e da Université de Paris I (Sorbonne). Desde 1922, leciona no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e, a partir de 1996, é coordenador de pós graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da mesma universidade. Ocupou vários postos na administração pública federal e do Distrito Federal ( governo Cristovam Buarque). É autor e organizador de vários livros e artigos. Seu último lançamento “Ciência, Ética e Sustentabilidade – Desafios ao Novo Século” (Cortez Editora).

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