Uma incógnita ficou no ar, há muitos anos, quando Tony Blair comunicou em Washington, ao lado de Bill Clinton, no dia 5 de fevereiro de 1998, a criação da sua Terceira Via. O anúncio foi feito na mesma entrevista coletiva em que os dois tornaram pública sua decisão de começar uma segunda guerra contra o Iraque (que acabou sendo transferida), e de aprovar um Acordo Multilateral de Investimento (o que ainda não ocorreu) regulando a soberania do capital financeiro internacional, frente ao poder dos estados nacionais e dos seus sistemas jurídicos locais. Na época, muitos consideraram este anúncio conjunto, uma mera coincidência ou fruto da rapidez e teatralidade própria destes encontros presidenciais bilaterais. Quatro anos depois, o senhor Richard Cooper – conselheiro político internacional do primeiro-ministro Tony Blair – se encarregou de explicar em poucas palavras, num trabalho recém-publicado no The Observer – e também no Brasil – a relação congênita entre a Terceira Via, a globalização financeira e o projeto de construção de “um novo tipo de imperialismo aceitável ao mundo dos direitos humanos e dos valores cosmopolitas”. Sua publicação provocou enorme polêmica entre os trabalhistas ingleses, por causa de sua natureza normativa. Mas a verdade é que o artigo de Cooper não inventa nem propõe nada de novo, apenas racionaliza e justifica, do ponto de vista moral e estratégico, uma ordenação hierárquica e uma ação disciplinar do poder mundial que já existe e vem sendo praticada há muito tempo, de forma explícita, e às vezes truculenta, por parte dos Estados Unidos e seus principais aliados.
Richard Cooper, como todo bom inglês, poupa palavras e vai direto ao ponto, sem receios nem subterfúgios. Para ele, as Grandes Potências se “tornaram honestas e não querem mais lutar entre si”. Compõem agora um novo clube, dos “estados pós-modernos”, pacíficos e colaboradores, mas que são uma minoria obrigada “a exportar estabilidade e liberdade” para os demais estados que nasceram da decomposição do velho imperialismo, e onde reina quase sempre a barbárie, o clube dos estados que ele chama de “pré-modernos”. Na relação entre estes dois mundos, Robert Cooper vê a origem e a necessidade de três novas formas de imperialismo no mundo: um primeiro “imperialismo cooperativo”, entre as nações pós-modernas, que já foram chamadas, no século XIX, de “civilizadas”; um segundo “imperialismo baseado na lei das selvas”, que rege as relações entre os estados civilizados e os “estados pré-modernos” ou “fracassados”, incapazes de assegurar os seus próprios territórios nacionais; e finalmente, um terceiro tipo de imperialismo, que Cooper chama de “voluntário da economia global”, “gerido por um consórcio internacional de instituições financeiras como o FMI e o Banco Mundial” e apoiado na aceitação por parte dos subordinados de“uma nova teologia da ajuda que enfatiza a governança e defende o apoio aos estados para que se abram e aceitem pacificamente a interferência das organizações internacionais e dos Estados estrangeiros”. Depois disto, ficou mais fácil compreender hoje que, naquele fevereiro de 1998, Tony Blair e Bill Clinton estavam de fato anunciando o nascimento da Terceira Via, e, ao mesmo tempo, defendendo as duas novas formas de imperialismo de que nos fala Cooper: o da “lei da selva” na relação com os estados “pré-modernos” e o da “lei do mercado”com relação aos estados e governos bem comportados, como foi o caso da América Latina nos anos 90. Nada que seja novo ou surpreendente para qualquer latino-americano menos desavisado. Mas, apesar disto, esta nova realidade descrita por Cooper foi objeto de uma permanente negação por parte dos intelectuais e políticos social-democratas brasileiros que conceberam e comandaram, nestes últimos oito anos, a política internacional de inserção econômica e diplomática do país. Por isto soaria divertido, se não fosse lamentável, assistir a um teórico e estrategista inglês da Terceira Via, ensinando aos seus colegas, social-democratas brasileiros, o que eles nunca quiseram ouvir nem entender: o bê-á-bá do novo imperialismo que acompanhou a globalização capitalista destas últimas décadas.
Este tema ocupou um lugar central na crítica intelectual e política ao projeto internacional do governo Cardoso. Ele mesmo participou desta discussão, em vários momentos, durante a década de 1990, denunciando a “visão conspiratória” dos críticos que sublinharam a dimensão política e imperial do processo de globalização e defenderam a necessidade de estratégias nacionais diferenciadas e ativas de inserção no processo da globalização econômica. Exatamente o que seu governo não fez, submetendo-se a uma terapia indiferenciada e transformando-se num caso paradigmático de “auto-imposição voluntária” da “teologia da ajuda” recomendada pelos organismos multilaterais e pelos governos dos “estados pós-modernos”. Nestes oito anos, o presidente brasileiro não perdeu oportunidade de denunciar a ignorância dos seus críticos, incapazes de entenderem a nova economia, a sociedade em redes, a globalização e as oportunidades abertas pelo avanço tecnológico pela expansão dos mercados desregulados e pelas novas formas de governança global.
Com a ascensão de Bush e os atentados de 11 de setembro, os fatos se precipitaram e a história real jogou rapidamente, na lata do lixo, artigos e mais artigos, livros e mais livros sobre o fim do interesse nacional, das fronteiras, dos estados, da política, da velhas formas de exercício do poder militar, e sobre o anacronismo das visões conspiratórias e imperialistas do mundo. Foi quando os intelectuais tucanos começaram a relembrar velhas lições que haviam esquecido nos seus momentos de maior ingenuidade e embevecimento com o renascimento globalitário e com a força incontrolável dos mercados e das redes. Bastou uma rápida retomada militar americana do comando político mundial e uma crise generalizada da “nova economia”, para que se confirmasse a impressão de que estes intelectuais perderam uma década falando bobagem e fazendo digressões sobre fantasias. Hoje despertam do seu mundo de ilusões atordoados com a volta da guerra, das armas e do poder político ao epicentro da ordem mundial e assustados com as novas diretrizes da política internacional norte-americana. E é neste estado de torpor mental que foram obrigados a ouvir um inglês – intelectual orgânico da Terceira Via – defendendo o rigor ético e a necessidade prática de um “novo tipo de imperialismo pós-moderno”, seja na sua versão mais suave e consentida, seja numa versão mais selvagem e violenta. Consciente ou inconscientemente, estes intelectuais sempre quiseram diluir ou esconder a importância dos conflitos de interesses entre estados e classe sociais na explicação da ordem mundial pós-guerra fria. Erraram redondamente e hoje estão sendo obrigados a refazer seus conceitos e suas análises. Nesse sentido, se tudo fossem só idéias e papéis, o mais fácil, rápido e indolor seria esquecer todas as bobagens globalitárias que foram ditas na década de 90, para não perder mais tempo do que já se perdeu lendo o palavreado utópico e as reflexões ingênuas dos nosso porta-vozes locais desta “auto-imposição suave” defendida pelo senhor Cooper.
Mas esta não é uma questão meramente acadêmica ou teórica, trata-se de um erro político e econômico que teve conseqüências trágicas em quase toda a América Latina. Basta olhar, neste momento, para a Argentina, sem esquecer que, nestes últimos oito anos, apesar da sua obediência cega, o Brasil se transformou numa economia praticamente estagnada, do ponto de vista do crescimento da renda per capita da sua população. Mas agora não bastam discursos contra as agências internacionais nem nariz torcido contra a Administração Bush, sobretudo partindo de um governo que seguiu fielmente suas recomendações durante seus oito anos de mandato, e que foi salvo pelo FMI e pelo governo norte-americano, na hora da quebra, em 1998. Neste momento, não é elegante e nem basta cuspir no prato em que se comeu, é necessário rever toda a teoria equivocada em que se sustentou a política econômica e a política externa brasileira, durante este período de dócil aceitação da “teologia da ajuda”e de suas rigorosas prescrições monetárias e fiscais – passo prévio a uma reavaliação das políticas, das reformas liberais, e do lugar e papel cumprido, nesta última década, pelos governos latino-americanos, dentro deste projeto imperial anglo-saxão e social-democrata de que nos dá notícia o senhor Robert Cooper.
Hoje as instituições financeiras e o governo norte-americano culpam a corrupção argentina e o gasto público das províncias, pelo fracasso das políticas e reformas liberais que eles mesmos patrocinaram e apoiaram durante toda a década de 90. Como relembra Joseph Stiglitz, em artigo publicado no Washington Post do dia 12 de maio recém-passado, durante todo este período, a Argentina foi classificada pelos analistas dos bancos de investimento e dos organismos multilaterais como uma economia “A-Plus”, por haver cumprido religiosamente todas as recomendações que lhe foram feitas, sem que jamais alguém tenha falado em corrupção ou lassidão fiscal. Como não é crível que estes pecados tenham sido cometidos da noite para o dia, é mais do que hora de reavaliar os princípios teológicos que destruíram completamente a sociedade e a economia Argentina, para não falar dos demais “milagres” latino-americanos da década passada.
O que espanta, nesta situação, é ver o Ministro da Fazenda brasileiro cobrar dos candidatos às eleições presidenciais uma declaração conjunta de lealdade incondicional à mesma “teologia” que destruiu a Argentina. Para o Ministro só existe esta política econômica e ela não pode nem deve ser objeto de uma discussão democrática, porque pertence ao campo das verdades teologais. Mas isto não é uma novidade, pois já faz anos que o Ministro repete monotonamente esse mesmo sermão. O que assusta é quando ele sai do seu normal e se exalta, brandindo sua bíblia como se fosse inquisidor, uma espécie de Torquemada da “teologia da ajuda”.