“A história se realiza de tal modo que o resultado final se desprende sempre dos conflitos entre um grande número de vontades individuais produzidas por uma grande quantidade de condições particulares de existência: um grupo infinito de paralelogramos de forças donde sai uma resultante, o acontecimento histórico”. Friedrich Engels, Carta a J. Bloch, 1890
Em momentos de ruptura ou inovação histórica, não é possível deduzir o futuro de um governo olhando apenas para sua composição ministerial. Seus nomes, suas trajetórias e suas militâncias partidárias são, sem dúvida alguma, muito importantes. Porém, são indicações insuficientes numa hora em que a decisão política é de mudar e de inventar, sobretudo em um governo que se propõe a operar de forma coesa em áreas tão diferentes como as da reforma agrária, alfabetização massiva, reestruturação urbana, do combate à fome, do crescimento econômico, da integração sul-americana, reestruturação da infra-estrutura energética, reforma da previdência, e tantas outras já anunciadas. Neste contexto, as vontades e as vocações individuais acabam sendo redefinidas pela posição que cada um ocupa no projeto coletivo de governo, ou dentro dos três ou quatro blocos – os “paralelogramos de forças” de que fala Engels – que disputam a direção hegemônica do projeto de mudança do governo Lula. O importante é que o resultado, o “acontecimento histórico”, o novo, nascerá da tensão que atravessa todos os blocos, e da correlação de poder que venha a se estabelecer nos próximos anos entre a vontade política de mudança e o peso da inércia das instituições; dos interesses consolidados, e da herança deixada pelos governos neoliberais da década de 90. Dependerá sobretudo da capacidade dos setores inovadores atuarem em conjunto e construírem uma nova hegemonia dentro do aparelho estatal, na sociedade e nos meios de comunicação de massa.
No governo Cardoso, a situação era bem mais simples: havia uma só política que se impunha a todo o governo, e que era o princípio, o meio e a meta final do seu projeto. Talvez tenha sido Antonio Palocci quem melhor sintetizou a crítica do novo governo Lula à impotência e ao fracasso desta política econômica, além da urgência de mudança, quando disse que “o governo FHC difundiu, junto com parcelas da comunidade internacional, a ilusão de que o crescimento econômico e a redução da exclusão social seriam resultante natural do desenvolvimento dos mercados […] Como resultado, estamos recebendo um país que não conseguiu avançar na separação da velha dicotomia entre economia e sociedade, e em que as políticas sociais aparecem como adereços e apêndices do esforço de controlar a economia […], um país onde o planejamento atingiu um nível de esvaziamento brutal e o estado brasileiro entrou num prolongado “apagão”. Mudar o eixo dessa equação, historicamente adversa ao nosso povo, representa o maior desafio do governo Lula.” (FSP. 28/12/2002)
Nunca é demais relembrar a realidade de que fala Palocci, porque, para uma parte da imprensa, é como se o Brasil e a América Latina estivessem em “estado de graça” e houvessem vivido um grande sucesso durante a década de 90, a ser preservado cuidadosamente pelos seus novos governos.
Ao contrário disto, foi uma década em que a média de crescimento do continente ficou em menos de 3%, quando havia sido de 5,5% anuais durante os 30 anos de seu “malfadado” desenvolvimentismo. No caso brasileiro, estas cifras são ainda mais contrastantes, porque a média anual de crescimento, entre 1945 e 1980, ficou entre 7% e 8%, sendo de apenas 3% durante a chamada década neoliberal. Olhando do ponto de vista de cada brasileiro, o seu pedaço no produto interno bruto cresceu 6% na década de 1970, 0.96% na década de 80, e algo em torno a 0.60 % entre 1990 e 1998, enquanto seu emprego declinava 0,3% ao ano.
No início do novo século, o quadro latino-americano deteriorou-se ainda mais com a destruição da economia argentina e a desintegração social e territorial da Colômbia. A taxa de crescimento no território caiu para 1,2% em 2001, e 0,7% em 2002 (1,1% negativos se forem incluídos os dados sobre a economia Argentina). Em quase todo o período, as taxas de juros foram sistematicamente superiores às taxas de inflação e de crescimento,tanto nos tempos de crises internacionais como nos anos de bonança financeira, independente do tamanho da receita ou dos superávits primários que fossem obtidos. Portanto, o que Palocci mostra, em seu discurso de entrega do Relatório Final da Transição, é que “deixemos de ilusões porque os últimos oito anos foram muito ruins, e o governo Lula foi eleito para mudar o que comprovadamente não deu certo”.
Mas como mudar este modelo e por onde começar? Eis aí duas questões nada triviais, nem consensuais. De partida, parece pouco sensato supor que possa haver uma política macroeconômica que sirva para um ou dois anos, e que depois possa e deva ser substituída, na visão caricatural veiculada pela imprensa, pelos famosos planos A e B. Não há duvida de que a política econômica do governo anterior foi mantida, como uma forma de evitar a “crise anunciada” para o início do governo Lula e como uma postura defensiva de quem teme uma retaliação imediata dos “mercados” ou agentes financeiros. Mas, sobretudo, sua manutenção se deve a uma herança financeira e cambial que pende como uma guilhotina, num contexto institucional de abertura e desregulamentação dos mercados, deixando o governo numa posição de extrema fragilidade. Neste sentido pode-se afirmar que houve uma vitória inicial das tais “forças dos mercados”, no jogo de braço com o projeto de mudança do governo Lula. Mas, ainda assim, existe uma diferença com o governo anterior que via, na sua política macroeconômica, a própria essência do seu projeto de sociedade e de economia para o Brasil: o aprofundamento dos mercados, acompanhado de políticas sociais compensatórias e focalizadas. Enquanto o novo governo tem dito, com insistência, que se propõe a mudar o modelo socioeconômico do país, e não apenas fazer políticas compensatórias ou pequenas mudanças de fachada.
O fundamental é a vontade política de mudar e a capacidade de manter esta decisão permanentemente, a despeito de toda e qualquer flutuação tática. O governo tem que se mover com a cautela de quem desarma uma bomba, mas, ao mesmo tempo, é fundamental que esteja decidido a desarmá-la, e que passe para todos os agentes econômicos sua convicção, sua decisão e sua certeza do sucesso das mudanças que implementará em todas as áreas estratégicas anunciadas e também no campo macroeconômico. É necesária uma posição ativa e não apenas de espera , descartando qualquer postura de observação para ver se tudo pode melhorar, num clima de credibilidade maior do que a da era Cardoso-Malan. Isto certamente não está em questão depois de oito anos de experimentação, como disse Palocci. O que está posto agora como problema central é como se pode e se deve alterar a rota sem causar reações desfavoráveis, o que supõe aptidão do governo em formular com clareza os objetivos e os passos a serem dados, além de uma grande capacidade de avaliar cenários alternativos e prever as reações dos principais atores envolvidos. Muitos podem ser os caminhos escolhidos ou priorizados.
Contudo, não se deve descartar as conseqüências de acontecimentos externos que independam da vontade governamental. Por exemplo, a hipótese de um cenário já exaustivamente comentado, que é o de uma nova guerra no Iraque. Se ela for prolongada e ainda se somar à crise na Venezuela, é bastante provável que o preço do petróleo chegue ou ultrapasse os 60 dólares o barril, e que o Brasil enfrente uma ‘ressaca’ financeira. Não há como escapar desses efeitos num mundo em que as finanças se globalizaram. Tampouco é possível, neste contexto globalizado, fingir-se de morto.
E, se este cenário externo se confirmar, o que fará o governo e em que momento? Depois que a crise já estiver avançada? Esperará para saber a duração da guerra, ou se antecipará a seus efeitos? Que decisões tomar? Em que áreas serão necessários controles e regulações? Isto vale apenas como um exemplo, mas todas estas questões são permanentes e estratégicas, não tem a ver apenas com a gestão macroeconômica, e, sim, com o desenvolvimento de longo prazo, e por isto requerem a reconstrução da capacidade de planejamento do estado brasileiro, destruída durante a década de 90. Porque, mesmo que a guerra não ocorra, é possível fazer mudanças, sobretudo em momentos de grande força política, e ela pode começar, por exemplo, por uma nova política de gastos e investimentos dos bancos e empresas estatais, sobretudo no campo da infra-estrutura e dos setores ligados aos “objetivos sociais” do governo. Como também podem passar pela construção de variados pactos sociais, nos quais lentamente se refaçam as correlações de poder escondidas por detrás de cada índice e de cada decisão no campo da política econômica, e sobretudo por trás das decisões mais discretas e distantes dos Bancos Centrais.
O mais provável, entretanto, é que a grande pressão “mudancista” surja a partir do novo objetivo estratégico definido pelo governo, para o país e para todas as políticas de estado: de imediato o combate à fome, e a médio prazo, a construção no Brasil de uma democracia e de um estado social. Por tudo o que tem sido dito pelo governo, não se trata de mais uma operação filantrópica, nem de uma nova e “megacomunidade solidária”. Trata-se de subordinar toda a estratégia de desenvolvimento nacional ao atendimento das necessidades e dos direitos fundamentais da população. Neste caso, como disse o presidente Lula, “a erradicação da fome exigirá transformações estruturais, a criação de empregos dignos, maiores e melhores investimentos, aumento substancial da poupança interna, expansão dos mercados no país e no exterior, saúde e educação de qualidade, desenvolvimento cultural, científico e tecnológico” (O Globo, 27/1/2003). Em síntese, uma mudança completa do modelo de desenvolvimento brasileiro, já que a “inclusão social” passaria a ser o verdadeiro motor e o norte das próprias transformações e ampliações na capacidade produtiva do país. Uma concepção de desenvolvimento, de planejamento e de nação completamente distinta da cartilha neoliberal, e também do antigo nacional-desenvolvimentismo.
Esta nova estratégia nacional de desenvolvimento é impossível sem uma redefinição da posição mundial do Brasil, uma nova correlação de forças e uma nova política de proteção dos interesses nacionais. É o complemento indispensável da decisão de mudar, que supõe o aumento da margem de manobra internacional do país, e da capacidade de intervenção interna do governo brasileiro. Enterra-se de vez o servilismo ingênuo dos neoliberais e o alinhamento automático com os Estados Unidos que caracterizaram a política externa brasileira durante o período da Guerra Fria. Em seu lugar estaria se colocando um projeto de poder internacional que é ao mesmo tempo nacionalista e partidário da cooperação e da solidariedade. Pode soar poética a frase do novo presidente brasileiro, mas, se for transformada em realidade, será uma revolução na história americana: “O Brasil tem de ser como um botão de rosa: desabrochar de uma vez por todas, assumir sua grandeza e dar a contribuição que tem que dar à América do Sul e ao mundo”. Se isto acontecer, um homem do povo terá feito o que o das elites brasileiras nunca conseguiu, em 180 anos de história: dizer ao mundo a que veio o Brasil.