“O imperialista, com os olhos duros e lúcidos, contempla a multidão dos povos e vê, olhando para todos eles, a sua própria nação”.
Rudolf Hilferding, O Capital Financeiro, 1910
Durante a década de 1990, o rápido crescimento econômico americano e o aumento do fluxo internacional de capitais ressuscitou a crença na convergência da riqueza e na harmonia de interesses entre os países desenvolvidos e o resto do mundo. Depois do ano 2000, entretanto, a estagnação mundial e a volta da guerra e da política de poder ao centro do sistema internacional, junto com o crescimento pífio dos “mercados emergentes”, recolocaram uma questão pendente desde o fim da Guerra Fria: O que fazer neste novo milênio, com as antigas colônias e com os estados “inventados” pelos europeus na América, no Oriente Médio, na Ásia e na África? Como manter a “ordem” e administrar as crises econômicas da periferia do sistema mundial? Como dividir entre as grandes potências as tarefas e os custos desta administração? Que projeto/esperança oferecer aos miseráveis do mundo, sobretudo depois do naufrágio da utopia globalitária?
Entre 1940 e 1990, o fim dos impérios europeus e a descolonização da África e da Ásia deram origem a cerca de 100 novos estados nacionais independentes. Em 2001, dos 188 estados membros das Nações Unidas, 125 haviam sido, em algum momento, colônias européias que se independizaram de forma concentrada, em duas grandes ondas: a primeira delas no início do século XIX, na América, e a segunda, depois da II Guerra Mundial, na África e na Ásia. Foram curtos pedaços de uma história muito longa, a própria história do sistema econômico e político mundial, que nasceu no século XV, como uma projeção “extra-territorial” do poder europeu. Seu primeiro passo foi dado por Portugal, ao tomar Ceuta dos muçulmanos, no norte da África, em 1415. Menos de um século depois, em 1494, os europeus já se consideravam no direito de repartir o mundo, definindo, na cidadezinha de Tordesilhas, o que foi de fato a primeira “ordem mundial européia”. Depois vieram os impérios marítimos asiáticos e a colonização americana, uma caminhada que nunca mais foi interrompida. Nos 500 anos seguintes, oito países, com apenas 1,6% do território global (Portugal, Espanha, Holanda, França, Inglaterra, Bélgica, Alemanha e Itália) foram conquistando ou submetendo praticamente todo o resto do mundo, através da conquista militar e territorial, ou através do mercado e do poder dos seus capitais. Como resultado, o “resto do mundo” se transformou na base de uma estrutura hierárquica de dominação global, centrada na Europa, e, depois, na sua ex-colônia norte-americana, assumindo através dos séculos a forma de colônias, domínios, províncias de além-mar, mandatos, protetorados etc.
Durante a Guerra Fria, a competição global e bipolar entre a União Soviética e os Estados Unidos funcionou até 1991 como um cinturão de segurança capaz de manter a “ordem” dentro desta verdadeira galáxia de novos estados nacionais. Immanuel Wallerstein sublinha, com razão, a importância que os Estados Unidos e a União Soviética tiveram na descolonização do século XX, defendendo, desde a I Guerra Mundial, o direito à autodeterminação dos povos, e depois do fim da II Guerra Mundial, o direito ao desenvolvimento econômico nacional. No fim da década de 1970, entretanto, o “desenvolvimentismo” já entrara em crise, na maioria dos países periféricos. Foi o momento em que o establishment da política externa norte-americana começou a rever sua política econômica internacional e seu apoio aos projetos desenvolvimentistas. Foi uma resposta à sua própria crise hegemônica e à crise econômica mundial dos 70, mas também ao desafio colocado pelo sucesso da estratégia da Opep com relação ao controle dos preços internacionais do petróleo e ao aparecimento do Grupo dos 77 e de sua proposta, aprovada pela Sexta Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas em 1974, favorável à criação de uma Nova Ordem Econômica Internacional que incluía a formação da UNCTAD e a defesa de uma reforma global da ordem internacional.
Foi neste momento que começou a ser definida a nova estratégia econômica internacional dos Estados Unidos, consolidada a partir da administração Reagan e da sua grande “restauração liberal-conservadora”. Na segunda metade da década de 80, a renegociação da dívida externa dos países da região foi o momento de inauguração da nova estratégia na periferia latino-americana em troca de melhores condições no pagamento das dívidas, mercados desregulados, economias abertas, estados não-intervencionistas e abandono radical de todo e qualquer tipo de projeto de desenvolvimento nacional. Principais tópicos da agenda imperial, que no início dos anos 90, foi apelidado por John Willlimason de “Consenso de Washington”.
Mais recentemente, o inglês Richard Cooper – conselheiro político internacional do primeiro-ministro Tony Blair – propôs uma explicação estratégica mais ampla da nova política econômica desenhada para os estados e as economias da periferia do sistema mundial. Do seu ponto de vista, existe uma relação congênita entre a globalização, as políticas econômicas liberais e o projeto de construção de “um novo tipo de imperialismo aceitável ao mundo dos direitos humanos e dos valores cosmopolitas”. Essas suas idéias provocaram uma grande polêmica na Inglaterra logo depois de publicadas, mas a verdade é que Cooper não inventou nem propôs nada de novo, apenas explicou o funcionamento da ordenação hierárquica e da ação disciplinar do poder mundial que já existe e vêm sendo praticadas desde que o “desenvolvimentismo” foi eliminado da agenda econômica dos países centrais. Para Cooper, as Grandes Potências se “tornaram honestas e não querem mais lutar entre si” e agora compõem um novo clube, dos “estados pós-modernos”, pacíficos e colaboradores, mas que são uma minoria obrigada “a exportar estabilidade e liberdade” para os demais estados que nasceram da decomposição do velho imperialismo, onde reina quase sempre a barbárie e que ele chama de “pré-modernos”. Na relação entre estes dois mundos, Cooper vê a origem e a necessidade de três novas formas de imperialismo benéfico para a humanidade: um primeiro “imperialismo cooperativo”, entre as nações pós-modernas, que já foram chamadas, no século XIX, de “civilizadas”; um segundo “imperialismo baseado na lei das selvas”, que regeria as relações entre os estados civilizados e os “estados pré-modernos” ou “fracassados”, incapazes de assegurar os seus próprios territórios nacionais; e, finalmente, um terceiro tipo de imperialismo, que Cooper chama de “voluntário da economia global”, “gerido por um consórcio internacional de instituições financeiras como o FMI e o Banco Mundial” e apoiado na aceitação por parte dos subordinados de “uma nova ‘teologia da ajuda’ que enfatiza a governança e defende o apoio aos estados que se abram e aceitem pacificamente a interferência das organizações internacionais e dos Estados estrangeiros”. Em síntese: a “lei da selva” para os estados “pré-modernos”, e a “lei do mercado” para os estados e governos bem-comportados, como foi o caso da América Latina nos anos 90.
Em junho de 2002, o mundo assistiu perplexo o presidente Bush anunciar a nova doutrina estratégica norte-americana que atribui aos Estados Unidos o direito ao ataque preventivo contra povos e estados que ameacem o seu interesse nacional. Na verdade, os Estados Unidos já fizeram uso deste “direito” em inúmeras outras ocasiões, durante os séculos XIX e XX, mas quase sempre contra países pequenos ou periféricos, ou sob os auspícios da Guerra Fria. A novidade não está neste ponto, está na universalização do direito, e no anúncio claro e inequívoco de que o objetivo último da nova doutrina é impedir o aparecimento, em qualquer ponto do mundo, e por um tempo indefinido, de qualquer outra nação ou aliança de nações que possam rivalizar com os Estados Unidos. É uma estratégia de “contenção”, como a que foi proposta por George Kennan – com relação à União Soviética – e adotada pelos Estados Unidos, depois de 1947, mas agora propondo-se um novo tipo de bloqueio ou destruição preventiva universal. E, aqui, como no caso do combate ao terrorismo, quem determina a existência ou não desta “vontade competitiva”, a ser contida ou destruída, são os próprios Estados Unidos.
Apesar da surpresa inicial, a verdade é que a nova doutrina militar do governo Bush acabou esclarecendo também o objetivo último da política econômica internacional dos Estados Unidos, e do “imperialismo voluntário da economia global’ de que fala Cooper. Elas se completam e apontam numa mesma direção, confirmando o ensinamento histórico de que o ataque preventivo mais eficiente contra uma nação emergente ou um estado com projeto de potência ou de ascensão dentro da hierarquia internacional é o bloqueio ou a desaceleração do seu desenvolvimento econômico. Assim deve ser lida e compreendida a contundente conclusão de John Mearsheimer – um dos mais importantes scholars americanos no campo das relações internacionais – no seu recente livro, The Tragedy of Great Power Politics: “This U.S policy on China is misguided. A wealthy China would not be a status quo power but an aggressive state determined to achieve regional hegemony. This is not because a rich China would have wicked motives, but because the best way for any state to maximize its prospects for survival is to be the hegemon in its region of the world. Although it is certainly in China’s interest to be the hegemon in the Northeast Asia, it is clearly not in America’s interest to have that happen” (2001. p. 402).