“A máxima mais correta, para avaliar com precisão as intenções dos homens, é examinar seus interesses…”. Cardeal de Retz, Memoires, 1717
James Stuart, o economista inglês, disse uma vez, em 1767, que “se um povo se tornasse completamente desinteressado, não haveria possibilidade de governá-lo”. E tinha toda razão, porque se transformaria numa massa amorfa, como na entropia termodinâmica da física moderna. Mas ele não previu como seria complicado governar um povo que fosse “completamente interessado”. Pior ainda, não previu como governar e ao mesmo tempo tentar mudar um povo com interesses tão desiguais e contraditórios, como chegou a ser a sociedade brasileira dois séculos e meio depois de Stuart. Razão para que os analistas refaçam seus conceitos e comecem a se habituar com a nova realidade política do país, porque a “era Lula” será inevitavelmente um tempo de fortes trepidações, e seu governo um espaço permanente de divergências, conflitos e negociações, uma verdadeira “guerra de posições”, e também um complexo jogo de xadrez.
O problema tem raízes estruturais muito conhecidas, começando pela distância abissal que separa os ricos dos pobres no Brasil, e sua distribuição desigual dentro de uma federação extremamente assimétrica. Para não falar da heterogeneidade do mundo assalariado, público e privado, e de sua distância da população excluída de todos os mercados. Verdadeiros fragmentos sociais, às vezes rígidos, às vezes tão mutantes que impedem a consolidação de classes e grupos de interesse mais nítidos, todos são tão desiguais que fica quase impossível a negociação e os acordos, para não falar dos consensos e “concertações”. É nesse ponto que se encontra a dificuldade essencial de um projeto ou governo de esquerda, ou centro-esquerda, porque não há como aumentar a “taxa de igualdade” de uma sociedade como esta, sem refazer os contratos e as instituições que consagram e congelam esta galáxia de interesses assimétricos. E isto tem que ser feito, sem reprimir os descontentes, nem contar com a apatia cidadã, como fazem os governos conservadores. Trata-se de um processo histórico que não tem como ser trilhado sem conflitos muito intensos e contínuos.
Além disso, a construção de um “pacto nacional pela retomada do desenvolvimento”, durante a campanha eleitoral de 2002, trouxe, para dentro da coalizão vitoriosa e do próprio governo Lula, forças que convergem em alguns pontos, mas que também se opõem em muitos outros.
Em alguns casos, é uma oposição entre interesses contraditórios, que se situam dentro do próprio mundo do trabalho. Mas, em muitos outros, uma oposição entre interesses excludentes e muito próximos daquilo que já foi chamado, em outros tempos, de luta de classes. Mas o quebra-cabeça não se esgota neste ponto, porque dentro do próprio PT sempre coexistiram grupos com posições ideológicas absolutamente distintas. Basta anotar, por exemplo, a força que sempre tiveram as posições antiestatistas ou “basistas”, enraizadas no espírito dos anos sessenta, mas muito próximas, do ponto de vista prático, das propostas neoliberais; ou mesmo das posições anti-desenvolvimentistas, que permaneceram como um trauma da luta contra a ditadura militar.
Isso para não falar do pensamento econômico ortodoxo e neoclássico, que marcou a reflexão de muitos economistas do PT, apesar da oposição ferrenha que o partido fez, durante os últimos oito anos, à política econômica ortodoxa do governo Cardoso-Malan.
É natural que a direita conservadora veja tudo isto como uma enorme confusão, e como uma permanente ameaça às regras e aos contratos generosos que foram estabelecidos pelo governo anterior. E tem alguma razão, porque não há nenhuma possibilidade de fazer mudanças institucionais ou sócioeconômicas importantes, sem que alguns contratos sejam modificados em muitos níveis que não apenas no mundo do trabalho.
Mas esta também é uma situação difícil para os setores de esquerda que convivem com dificuldade com as oscilações do conflito e das negociações, das concessões e dos retrocessos que acompanham, inevitavelmente, todos os projetos de mudança social e econômica, realizados em condições democráticas. É muito difícil desfazer-se da fantasia dos modelos e das soluções rápidas e indiscutíveis, ou conviver com um processo em que não se distinguem com claridade as “etapas”, nem se vê, no horizonte próximo, um final glorioso.
Neste momento, é o que está se assistindo no debate nacional em torno da reforma da Previdência Social. Trata-se de um projeto de natureza claramente fiscalista, que atende a compromissos assumidos com o FMI e supõe enviar sinais positivos para os investidores internacionais . Mas, simultaneamente, é um projeto que sempre esteve presente nos programas do PT, acalentado há muito tempo pelo seu segmento sindical privado e paulista, e do agrado do seus setores antiestatistas, ainda que estivessem na contramão dos outros setores que quisessem reconstruir o Estado desmontado pelo privatismo tucano.
O que estamos assistindo é apenas o começo deste processo, pois logo teremos negociações muito complexas, em torno da Reforma Tributária, ainda que sem a presença direta dos movimentos sociais e sindicatos. As origens do conflito, embora antigas, tiveram seu agravamento na década de noventa, quando as políticas de abertura e desregulamentação da economia brasileira instigaram uma concorrência à morte entre as regiões, os estados e os municípios, pela conquista dos investidores.
Tais políticas instigaram também uma luta de todos contra o governo central que acabou por estrangular as unidades de poder subnacional com sua política de arrocho fiscal e monetário. Este quadro se mantém até hoje, e, neste contexto de “guerra fiscal”, como obter um acordo entre unidades federativas que têm interesses reais tão diferenciados?
Novos conflitos ainda virão, quando o governo avançar em sua agenda de reformas da Legislação Trabalhista, das Agências Regulatórias, do Poder Judiciário, do Sistema Partidário etc. Em todos estes casos, a resultante final dependerá muito da capacidade do governo de gerenciar os conflitos, sem cair na tentação fácil da repressão ou do abandono de suas próprias posições estratégicas.
Existem, contudo, dois conflitos que serão inevitavelmente mais duros e permanentes, se o governo enfrentar os interesses das duas partes mais importantes e resistentes da direita brasileira, ligadas, respectivamente, à terra e ao dinheiro.
No caso da terra, a própria conjuntura econômica do país, com desaceleração do crescimento, o aumento do desemprego e a queda da renda do trabalho tendem a radicalizar a situação social do campo,de forma independente ou até mesmo por cima do próprio MST.
Hoje, ao contrário da década de sessenta, a discussão da reforma agrária passa longe do agro-business, responsável por grande parte das exportações brasileiras, e por isto atinge muito pouco o núcleo duro do capitalismo agrário brasileiro. Mas, mesmo assim, vem provocando uma reação conservadora tão nervosa, que às vezes lembra uma certa histeria coletiva, animada por parte da imprensa brasileira,e que presenciamos nos meses anteriores do golpe militar 1964.
Na verdade, é um projeto que atinge, sobretudo, setores de baixa produtividade, mas que dispõem de uma capacidade de resistência secular, quase atávica, responsável pelo Brasil ser ainda um dos poucos países do mundo onde jamais houve uma verdadeira reforma agrária. Esta relativa marginalidade dos interesses afetados poderia facilitar o processo de negociação, se o governo não estivesse com as mãos atadas pelo seu próprio arrocho fiscal, em mais um caso de conflito intensificado pela política macroeconômica conservadora.
Neste sentido, pode-se dizer que todos os caminhos apontam para um mesmo conflito central, com os interesses da velha e da nova direita financeira, sintonizadas com as posições do Banco Central, do Ministério da Fazenda e com as teses clássicas do FMI.
Dentro do governo, seu enfrentamento mais visível é com o bloco da “esquerda desenvolvimentista”, muito mais frágil e desarticulado, apesar de retoricamente majoritário. Entre os dois não se trava um debate teórico ou acadêmico, muito menos uma discussão sobre alternativas técnicas. O que existe é um confronto entre dois projetos absolutamente distintos para o Brasil, apoiados por grupos de interesse antagônicos.
Neste momento, por exemplo, o governo está anunciando um Plano Plurianual, válido até 2007, e um audacioso programa de investimentos em infra-estrutura, liderado pelos recursos públicos. São duas tentativas de “sair das cordas”, ampliando os horizontes e definindo objetivos estratégicos de médio e de longo prazos. Mas ninguém duvida de sua incompatibilidade com a política econômica ortodoxa do próprio governo.
Por tudo isto, quase todos já dão como certo que os dois planos serão vetados, ou transformados apenas num “menu” de alternativas a ser oferecido ao capital privado. O mesmo que fez sem sucesso, várias vezes, o governo Cardoso-Malan, apesar da conjuntura mais favorável do ponto de vista da disponibilidade de capitais internacionais.
Aqui se trata de uma questão de decisões de governo e não de pessoas.Neste caso elas são quase irrelevantes. Trata-se de uma opção de política econômica que atinge e bloqueia as ações de todos os demais segmentos da máquina estatal. Por isto, independente de quem ocupe os cargos, este tipo de política macroeconômica acaba tendo uma “centralidade autoritária” dentro de qualquer governo.
Foi essa ação que John Williamson percebeu, já há algum tempo, como sinal positivo em artigo publicado em 1993, “A Democracia e o Washington Consensus”. Para Williamson, a sobrevivência dos regimes democráticos, em países submetidos às políticas econômicas “ortodoxo-liberais”, supõe que os atores políticos e econômicos de cada país aceitem previamente que só existe uma, e apenas uma, política econômica “científica” e eficaz. Com isto poderiam, ao estabelecer entre si uma espécie de “armistício”, eliminar, definitivamente, o tema da política econômica das discussões e das competições eleitorais, e de todo e qualquer tipo de debate democrático.
Com isto, dizia Williamson, os investidores teriam assegurado que qualquer governo que fosse eleito pelo voto universal manteria a mesma política econômica, sem atingir os seus interesses materiais. E estaria resolvido, de uma vez para sempre, o velho problema da “credibilidade”.
O pequeno detalhe, ‘esquecido’ por Williamson, é que, neste “armistício macroeconômico” que ele propõe, todos os ônus ficam por conta dos não-investidores, ou seja, da maioria da população que sofre diretamente os efeitos de uma economia que não cresce e de uma sociedade cada vez mais desigual e excludente, sem qualquer perspectiva de mobilidade social. E, o que é pior, sem nenhuma expectativa de que o modelo “liberal-ortodoxo” se transforme no seu contrário, isto é, através de um desenvolvimento espontâneo e gradual.
Isto significa que o governo Lula está num beco sem saída? Não necessariamente. Cedeu excessivamente na primeira hora em que sua estrondosa vitória eleitoral lhe dava o direito e a força para definir as exigências e os sacrifícios pedidos a cada um dos segmentos da sociedade brasileira, incluindo o mundo do Capital. Até porque ele é menos arisco do que se imagina e muito mais flexível e eclético do que dizem seus defensores locais, em geral economistas ligados ao setor financeiro.
Este momento, contudo, já é passado, e agora para sair da armadilha, o governo terá que inventar novos caminhos que contornem as restrições que se auto-impôs. Uma tarefa que não será nada trivial já que a médio prazo as políticas ortodoxas se tornam prisioneiras de si mesmas e de seu próprio imobilismo, ainda que as economias já estejam em franco processo de crise recessiva.
Mas esta é uma história que não acabou, apenas começa. Uma história cujo desfecho, ainda repleto de possibilidades, se dará muito mais pela ação política do que pela opção técnica. Mas não há duvida de que será necessário ao governo Lula “quebrar ovos”, também do lado do Capital, se quiser mudar o rumo e a história deste país.