Não é fácil reler a história e reconstruir suas conjunturas políticas do passado. Existe sempre uma enorme distância entre as lembranças pessoais e aquilo que de fato ocorreu: entre os acontecimentos e suas interpretações ideológicas da época e entre as deduções teóricas e o que foi sendo revelado pelo passar do tempo. São problemas comuns de toda análise conjuntural, mas, às vezes, as distâncias entre o mundo das idéias e o da realidade é tão grande que parece tratar-se de dois relatos que não tem nada a ver entre si, como no caso da história brasileira, no período que vai da morte de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, até o golpe militar de abril de 1964.
O governo Goulart, por exemplo, às vezes parece ininteligível, porque foi atacado com freqüência pela esquerda e acabou derrubado pelas forças de direita, acusado de conivente com os comunistas, apesar de seus sucessivos ministérios terem contado com a participação das figuras mais expressivas do conservadorismo econômico e político brasileiro da época. Esta confusão, e às vezes até a convergência, entre a esquerda e a direita já vinham de antes e parecem ter sido uma marca daqueles tempos. Atualmente, Getúlio é um homem admirado por setores da esquerda e também dos militares, por seu papel decisivo na construção do projeto nacional brasileiro. Mas, à época, foi chamado por uns e outros de “agente americano” ou de “instrumento útil dos comunistas”. O episódio da Carta Testamento é emblemático: na noite anterior ao suicídio, a primeira página do jornal do PCB acusava Vargas de ser um “agente do imperialismo norte-americano”, e 48 horas depois, ele já havia sido convertido em herói nacionalista e da luta antiimperialista. Se lermos a imprensa da época, veremos que o mesmo ocorreu com JK, acusado ora pela esquerda, ora pela direita, de “pró-imperialista”, “corrupto”, “inflacionário”, “populista”, etc. E o mesmo passou com Jango, acusado de ser populista, nacionalista e, às vezes, conservador, mas sobretudo de estar cercado pela esquerda, apesar de esta o ter criticado de forma quase permanente.
Essa história fica ainda mais estranha quando se detalha alguns de seus episódios exemplares. Por exemplo, a criação do monopólio estatal do petróleo, atribuído ao Vargas “estatista”, mas que foi obra parlamentar da UDN liberal e “privatista”; ou a Instrução 113 da Sumoc, que facilitava a entrada do capital estrangeiro no Brasil, de janeiro de 1955, que foi obra do liberal ortodoxo Eugenio Gudin, que havia assessorado, ao mesmo tempo, o ministro da Fazenda de Vargas, Oswaldo Aranha, na formulação da reforma cambial heterodoxa de 1953. Logo depois, Gudin renunciou, e JK derrotou as forças políticas e ideológicas às quais ele esteve sempre associado, mas foi a Instrução 113, de sua autoria, que viabilizou o investimento estrangeiro decisivo para o sucesso do Plano de Metas de JK, criticado na época pela esquerda como um plano “entreguista” e depois comemorado pela própria esquerda como um grande passo da industrialização pesada brasileira. A mesma confusão se mantém frente à política econômica de João Goulart e com o Plano Trienal do ministro do Planejamento, Celso Furtado, às vezes atacado como alinhado com o FMI, outras vezes como sendo um plano “estatista” e quase revolucionário, devido à sua defesa das “reformas de base”.
Não há como explicar todos esses episódios e paradoxos se não aceitarmos a hipótese de que ocorreu uma mudança radical nos códigos de leitura da realidade brasileira no início da década de 1950. E duas coisas parecem ter contribuído decisivamente para este curto-circuito: em primeiro lugar, as transformações geopolíticas mundiais, que acabaram afetando as lutas internas da política brasileira; e em segundo lugar, a forma em que foi possível a experiência desenvolvimentista no Brasil dos anos 1950, um país situado na periferia latino-americana do sistema mundial, endividado e com problemas crônicos de financiamento externo, desde sempre, um laboratório experimental das políticas liberais anglo-saxônicas.
A nova geopolítica da Guerra Fria, depois de 1947, trouxe algumas novidades radicais. A primeira foi a volta das “guerras religiosas”, nas quais o universo da ética e dos valores se cola e esconde o mundo dos egoísmos materiais e das estratégias de poder dos estados individuais. A segunda foi a globalização dessa guerra religiosa, que dividiu quase todo o mundo em dois campos opostos e excludentes.
Depois que o Partido Comunista foi posto na ilegalidade, em 1947, a primeira repercussão desta nova realidade mundial no Brasil talvez tenha ocorrido numa eleição rotineira para a Diretoria do Clube Militar do Rio de Janeiro, em 1952. Como num passe de mágica, duas figuras provincianas e desconhecidas – Estillac Leal e Horacio Barbosa – adquiriram repercussão nacional e internacional, como se tivessem sido transformados em soldados de uma luta que eles mesmos ainda não compreendiam muito bem. Essa abrupta “internacionalização” do cotidiano e de todas as suas disputas, mesmo as mais locais e mesquinhas, desarrumou completamente o quadro clássico de referência das forças políticas e ideológicas brasileiras.
Isso ficou claro na conspiração e nos argumentos que derrubaram Getulio Vargas tanto quanto nos motivos que levaram o presidente norte-americano Lyndon Jonhson a enviar, desnecessariamente, armas para os conservadores durante o golpe militar de 1964. Entre uma data e outra, a Guerra Fria escalou pelo mundo afora, após a vitória presidencial do General Eisenhower, em 1953. Em seguida, os EUA deram um primeiro passo no sudeste asiático, financiando os franceses no Vietnam, e outro passo enorme no Oriente Médio, durante a crise do Canal de Suez, em 1956.
A América Latina, contudo, só foi mesmo incorporada à zona de interesse estratégico e geopolítico dos Estados Unidos depois da conversão socialista da Revolução Cubana em 1961, da crise dos foguetes soviéticos em 1962 e da “batalha” do Golfo de Tonkin, onde se iniciou o envolvimento massivo dos EUA no Vietnam, a partir de fevereiro de 1964. Esta expansão e agravamento da Guerra Fria reduziram ainda mais a autonomia dos países envolvidos e, por isso, teve um papel decisivo no golpe de 1964.
No Brasil, entre 1954 e 1964, a direita se comportou de forma monotônica, denunciando a “ameaça comunista” e o “populismo” em todos os três governos, enquanto a imprensa conservadora anunciava novas crises institucionais a cada mês. Mas os “erros teóricos” da direita nunca tiveram muita importância, cumprem um papel ideológico importante e acabam sendo “corrigidos” pela vitória dos interesses que representam. O mesmo não acontece com a esquerda, cujos erros de avaliação sempre têm conseqüências adversas e prolongadas, como ocorreu no Brasil entre 1954 e 1964. Naquele momento, havia duas grandes teorias ou interpretações pela esquerda da realidade brasileira: a teoria da “Revolução Democrático-Burguesa”, dos intelectuais do PCB, e a teoria “revisionista” do “marxismo paulista” dos anos 1950/60, que hoje se poderia chamar de “Teoria do Desenvolvimento Associado”. As duas discutiram o capitalismo brasileiro, suas classes, seu estado e suas relações internacionais, mas não conseguiram explicar a permanência de algumas contradições ou ambigüidades do período, por exemplo, porque os três governos desenvolvimentistas daquela década mantiveram políticas macroeconômicas ortodoxas ao lado das suas políticas industrializantes; porque lutaram pelo investimento estrangeiro ao mesmo tempo em que tomavam medidas – às vezes – agressivas para proteger o mercado e o capital nacional; porque mantiveram relações preferenciais com os trabalhadores urbanos, preocupando-se com o seu emprego e o seu salário, ao mesmo tempo em que implementavam outras políticas de corte antipopular; ou, finalmente, porque tomaram iniciativas soberanas no campo da política externa, enquanto se alinhavam, em outros momentos, de forma quase automática, ao lado dos Estados Unidos.
A teoria da “revolução democrático-burguesa” jamais conseguiu decifrar o segredo “material” desta ambigüidade, porque ficou prisioneira de um modelo que nunca existiu na experiência européia e que não coube na história brasileira. Mas a “teoria do desenvolvimento associado” tampouco conseguiu separar o joio do trigo e nem valorizar, no momento oportuno, a existência de pelo menos dois grandes projetos dentro dos governos de Vargas, de JK e de Jango, cuja relação conflitiva estava produzindo uma novidade histórica, que foi abortada pelo golpe de 1964.
O primeiro projeto foi o do “desenvolvimentismo conservador”, que nasceu como reação defensiva frente à crise econômica de 1929, mas se transformou, durante o Estado Novo, num projeto de construção de uma economia nacional, e depois, durante os anos 1950, num programa de industrialização que alcançou seu melhor momento durante o governo JK. E o segundo foi o de um “desenvolvimentismo nacional, popular e igualitário” que nasceu no campo do debate das idéias e das mobilizações sociais muito mais do que no gerenciamento dos governos, mas nos anos 1950 se tangenciou o “desenvolvimentismo conservador”, no campo das idéias e das alianças, e no início da década de 1960 propôs uma reforma do projeto que incluía, ao lado da industrialização e do crescimento econômico acelerado, o objetivo da democratização do acesso à terra rural e urbana, à renda, ao sistema educacional e também ao sistema político, uma alternativa que foi sintetizada, em parte, pelo Plano Trienal de Celso Furtado de 1963, e que foi bloqueada pelo golpe militar de 1964.
Depois de 1964, a teoria da “Revolução Democrático-Burguesa”, com sua força mobilizadora e seus enormes erros de interpretação do Brasil, acabou se perdendo no tempo e no esquecimento. Mas a maior parte dos “revisionistas” do “marxismo paulista”, do início dos anos 1960, acabou ao lado ou à frente da direita neoliberal, numa opção consciente e que já se podia antecipar na sua crítica quase irracional a todo tipo de nacionalismo, na sua identificação arbitrária da presença do estado na economia com o “autoritarismo militar” e no seu ataque feroz ao fantasma do “populismo”, que reinventou em parceira com a direita. Um conceito absolutamente impreciso e ultrapassado, que foi transformado no inimigo número “1” dos conservadores, inimigo elástico, que está em todo lado e que pode atacar a qualquer hora, como no caso do “bicho-papão” e do velho comunismo da UDN.