O quebra-cabeça da esquerda
Arte: Pedro Alice
Este é o segundo de uma série de três artigos sobre a “perplexidade” da esquerda frente ao governo Lula vista pelo ângulo da discussão dos socialistas sobre a gestão econômica do capitalismo. No caso dos europeus, da esquerda latino-americana e da brasileira em particular – e do próprio governo Lula.
Seu Plano Ayala foi derrotado, e Zapata foi morto, mas seu programa agrário foi retomado alguns anos mais tarde, junto com o espírito reformista da revolução, pelo general Lázaro Cardenas, que governou o México durante a crise mundial da década de 1930.
Seu governo foi nacionalista, radicalizou o processo de reforma agrária, estatizou as empresas estrangeiras produtoras de petróleo, criou os primeiros bancos estatais da América Latina de desenvolvimento industrial e de comércio exterior, envolveu o estado na construção da infraestrutura do país e promoveu políticas ativas de industrialização e proteção do mercado interno mexicano.
Era 1938 e, apesar de nem Zapata, nem Cardenas serem socialistas, estava pronto o programa de governo da esquerda reformista latino-americana, hegemônico até a década de 1980.
O mesmo que inspirou a revolução camponesa boliviana, de 1951; o governo nacional-popular de Jacobo Arbenz, na Guatemala, entre 1951 e 1954; a primeira fase da revolução cubana, entre 1959 e 1962; e o governo reformista do general Velasco Alvarado, no Peru, entre 1968 e 1975.
No caso de Cuba, entretanto, a invasão de 1961 e as pressões americanas apressaram uma opção socialista mais radical pela coletivização da terra e a estatização e planejamento central da economia. Esse modelo foi seguido, em grandes linhas, pela revolução sandinista da Nicarágua, de 1979 até a intervenção militar do governo Ronald Reagan.
O Chile ocupa um lugar único nessa história da esquerda latino-americana. Na década de 1930, os socialistas e comunistas chilenos formaram uma Frente Popular com o Partido Radical, que ganhou as eleições presidenciais de 1938 e foi reeleita três vezes, antes de ser desfeita em 1947 pela pressão americana da Guerra Fria.
Os governos da Frente Popular chilena seguiram basicamente o mesmo figurino mexicano, sobretudo no campo das políticas ativas de industrialização e proteção do mercado interno, mas iniciaram, ao mesmo tempo, um programa original de universalização da educação e da saúde pública.
Em 1970, essa coalizão política renasceu no Chile com o nome de Unidade Popular, agora sob a hegemonia dos socialistas e comunistas e com uma nova proposta de “transição democrática para o socialismo”.
Na prática, entretanto, o programa de governo de Salvador Allende aprofundava o “modelo mexicano”, propondo medidas e políticas que já, naquele momento, apontavam na direção de um “capitalismo de estado”, como havia sido concebido pelos comunistas franceses na década de 1960.
Allende acelerou a reforma agrária e a nacionalização das empresas estrangeiras produtoras de cobre, mas, ao mesmo tempo, criou um “núcleo industrial estratégico”, de propriedade estatal, que deveria ter sido o embrião de uma futura economia socialista.
Este foi, aliás, o pomo de discórdia que dividiu a esquerda chilena durante todo o governo da Unidade Popular, chegando no limite da ruptura na discussão da política de estatizações industriais – entre os que queriam limitá-las aos setores estratégicos da economia e os que queriam estendê-las, até originar um novo “modo de produção”, sob controle estatal.
A “transição democrática para o socialismo”, de Salvador Allende, foi interrompida pela intervenção norte-americana do governo Richard Nixon e pelo golpe militar de Augusto Pinochet. O debate programático da esquerda, entretanto, ficou sem respostas, porque na década de 1980, quando o Partido Socialista do Chile voltou ao poder, aliado com os democrata-cristãos, já estava completamente alinhado com o pensamento e as políticas neoliberais.
No Brasil, a relação dos socialistas e da esquerda em geral com o poder e com o governo seguiu uma trajetória diferente, condicionada por dois acontecimentos fundamentais da década de 1930.
O primeiro foi o desaparecimento precoce da Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma espécie de embrião de Frente Popular abortado pelo levante militar comunista de 1935. E o segundo foi o golpe de 1937 e o Estado Novo, que deram aos conservadores a liderança no Brasil do projeto de industrialização desenvolvimentista e das primeiras políticas sociais e trabalhistas de corte urbano.
A partir daí, se estabelece uma relação extremamente ambígua entre a esquerda brasileira, o estado e as políticas desenvolvimentistas. Ambiguidade visível, por exemplo, nas relações instáveis do Partido Comunista com Getúlio Vargas: ilegalidade e perseguição durante o Estado Novo; aliança no “movimento queremista de 1945; e idealização nacionalista da figura de Vargas, depois de sua Carta Testamento.
Nessa trajetória, entretanto, o que mais chama a atenção é a oposição ferrenha do PCB ao “segundo governo” de Vargas, entre 1950 e 1954, quando estava sendo montada a infraestrutura da industrialização pesada no Brasil
Só depois do suicídio do presidente, é que o PCB – a principal organização de esquerda naquela época – muda sua orientação e deixa para trás o seu projeto revolucionário da Frente Democrática de Libertação Nacional, adotando a nova estratégia de avanço por “etapas”, começando pela “revolução democrático-burguesa”, que já vinha sendo seguida por quase todos os partidos comunistas da América Latina.
A nova aliança “anti-imperialista” com a “burguesia nacional” proposta pelo PCB e favorável ao “desenvolvimento das forças produtivas capitalistas” explica seu apoio e sua participação, ainda que secundária, nos governos de JK e de João Goulart.
Desde a década de 1950, entretanto, e sobretudo na década de 1960, multiplicaram-se as críticas ideológicas e as cisões políticas que acabaram fragilizando o movimento comunista. Além disso, foi também neste período que se construiu a principal crítica intelectual e de esquerda às alianças e às políticas “nacional-desenvolvimentistas”.
Ela veio de um grupo de intelectuais marxistas, discípulos da “escola sociológica” de Florestan Fernandes, e professores quase todos da Universidade de São Paulo. Durante a década de 1960, esses discípulos de Florestan passaram em revista e criticaram praticamente todos os pontos fundamentais da teoria da “revolução democrático-burguesa”, mas não foram capazes de formular uma estratégia e um programa alternativo ao dos desenvolvimentistas.
Esse “déficit programático” foi preenchido transitoriamente, neste período, por uma contribuição que veio de fora da esquerda e do pensamento marxista: a “economia política” da Cepal, organismo das Nações Unidas, criado em 1949 e sediado em Santiago do Chile.
A Cepal propunha, desde o início da década de 1950, um projeto nacional de industrialização e desenvolvimento, liderado pelo estado, mas com apoio do capital privado estrangeiro.
Defendia ao mesmo tempo a necessidade do planejamento estratégico de longo prazo, dos investimentos em infraestrutura e das políticas de apoio à industrialização. Foram estas ideias que acabaram dando algum conteúdo propositivo às discussões excessivamente abstratas da esquerda brasileira daquela época.
Mais à frente, na década de 1980, já no final do regime militar e de mais um ciclo de desenvolvimentismo conservador, autoritário e antipopular, nasceram dois projetos reformistas, daquela mesma matriz intelectual, crítica e marxista dos anos 1960.
O primeiro propunha que se transformasse a velha base desenvolvimentista, construindo os alicerces de um novo “capitalismo organizado”, agora sob comando democrático, de uma holding estatal e de um “estado de bem-estar social”.
Suas ideias foram consagradas pelos capítulos econômico e social da Constituição de 1988, mas seu programa foi derrotado dentro da coalizão do governo Sarney, depois do fracasso do Plano Cruzado.
E o segundo propunha exatamente o oposto: o abandono completo das ideias e políticas de tipo desenvolvimentista e a adoção imediata e radical das reformas e políticas neoliberais que já haviam sido adotadas pelos mexicanos e pelos socialistas chilenos, sendo levadas até seu último extremo, durante o governo do mais talentoso aluno de Florestan Fernandes, o professor Fernando Henrique Cardoso.
De derrota em derrota, no Chile e no México como no Brasil, na década de 1990 completou-se um giro de 180º graus com relação ao projeto original da esquerda latino-americana.
Agora, em vez do nacionalismo, o cosmopolitismo de cócoras; em vez da reforma agrária, o agrobusiness; em vez das políticas de desenvolvimento, a desregulação dos mercados e a privatização do estado; em vez das políticas universais de bem-estar social, a focalização e a filantropia “não governamental”; em vez das políticas macroeconômicas ativas, de inspiração keynesiana, as políticas ortodoxas de corte monetarista.
No campo teórico, uma boa parte da esquerda substituiu o conceito de “sociedade de classes” pelo da “sociedade em redes” e trocou a crítica ao imperialismo pela defesa entusiasmada do “desenvolvimento associado” com o Império.
Como resultado desta história de revisões e deserções sucessivas, em 2004 o ex-líder intelectual do “marxismo paulista” dos anos 1960 e ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, virou o líder político inconteste da direita brasileira, enquanto o presidente do Chile, o socialista Ricardo Lagos, sentiu-se absolutamente à vontade para assinar um tratado comercial com os Estados Unidos que transformou seu país num “domínio” econômico norte-americano. Na década de 1990 os herdeiros partidários de Lazaro Cardenas, no México, tomaram a mesma decisão.
E agora, Emiliano Zapata?
José Luis Fiori é colaborador do jornal Extra Classe.