Entre blefes e mamatas
Cientes de que não contam com o apoio da opinião pública, e de que será muito difícil argumentar em favor do passivo que alegam ter, os defensores dos interesses das empresas tecem nos bastidores, e com o apoio de integrantes do governo Tarso Genro (PT), uma espécie de plano B. O primeiro passo é articular dentro do Executivo a certeza de que o passivo existe – tese que, publicamente, é hoje rechaçada pelo governador. A segunda etapa do plano incluirá a tentativa de, aceita a ideia do resíduo, repassar a conta para a União. A alegação será a de que a maior parte dos trechos atualmente sob concessão são federais e de que o governo federal (conhecido por cumprir à risca cláusulas contratuais) “levará vantagem” caso receba de volta em bom estado as estradas sem o cumprimento minucioso das cláusulas que permitiram a interpretação de que as concessionárias tiveram prejuízo nos 15 anos à frente do negócio.
No Palácio Piratini, a concepção de que as concessionárias possuem valores a receber em decorrência de desequilíbrios nos contratos já começou a ser vendida por assessores próximos ao governador, apesar de o próprio Tarso Genro (PT) e seus principais secretários, como os titulares da Casa Civil, Carlos Pestana, e da Infraestrutura, Beto Albuquerque, afirmarem publicamente o contrário.
No Palácio Piratini, a concepção de que as concessionárias possuem valores a receber em decorrência de desequilíbrios nos contratos já começou a ser vendida por assessores próximos ao governador, apesar de o próprio Tarso Genro (PT) e seus principais secretários, como os titulares da Casa Civil, Carlos Pestana, e da Infraestrutura, Beto Albuquerque, afirmarem publicamente o contrário.
A existência de posições divergentes dentro do primeiro escalão do governo quando o tema são os pedágios não é novidade. Pestana representa uma posição majoritária e histórica para o PT, que defendeu a não renovação e pouco simpática a novas concessões privadas. Beto tem postura semelhante quanto à renovação, mas, quando do projeto de criação da Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR), defendeu até o final o governo mantivesse aberta a porta para novas concessões. Acabou sendo voto vencido. Já o coordenador da Assessoria Superior do governador, João Victor Domingues, foi o representante do governo que participou de rodadas de negociações com as concessionárias (surpreendendo até caciques petistas), após a criação da EGR declarou que o Executivo avalia a possibilidade de um novo projeto prevendo concessões privadas e, agora, trabalha com a alternativa derepassar o “passivo” à União.
No caminho dos que estão mais alinhados aos interesses das concessionárias, contudo, além de desafetos de peso dentro do próprio Executivo, há deputados da base aliada na Assembleia Legislativa e um sem número de representantes da sociedade civil organizada (desde integrantes de setores empresariais, como o de transporte de cargas, até membros dos chamados Coredes, os Conselhos.
Regionais de Desenvolvimento, e associações locais de usuários de rodovias). Todos apresentam dados para demonstrar que o passivo não existe e que sua alegação é uma “cartada” das concessionárias para tentar permanecer no negócio que o próprio governador Tarso Genro descreveu como “mamata”.
De quebra, estão em curso as inspeções especiais na Secretaria Estadual de Infraestrutura e Logística (Seinfra) e no Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) determinadas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) para acompanhar as ações do Executivo na questão. As inspeções foram indicadas em março, na mesma medida cautelar do TCE que, a partir de um parecer do Ministério Público de Contas (MPC), determinou que os contratos não fossem renovados e fixou prazo de 120 dias para o Daer rever o equilíbrio econômico-financeiro dos mesmos.
Resíduos financeiros seriam menores
Foto: Caco Argemi-Palácio Piratini
Os dados divulgados pelas concessionárias, que tomam por base levantamento feito pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), indicam que apenas uma das empresas concessionárias teria a receber um passivo de R$ 1,7 bilhão em decorrência dos desequilíbrios econômico-financeiros dos contratos. Os desequilíbrios teriam se originado principalmente no não reajustamento de tarifas, na utilização de rotas alternativas, na realização de obras não previstas nos contratos, nos volumes de tráfego abaixo dos estimados e nas decisões judiciais que interromperam temporariamente cobranças.
O Tribunal de Contas do Estado (TCE), o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) e a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos Delegados (Agergs) apontaram resíduos financeiros em favor das concessionárias, mas muito inferiores aos indicados por elas. Os cálculos do TCE resultam em R$ 69,1 milhões (valores de 1996), os da Agergs em R$ 95,8 milhões e os do Daer em R$ 165,5 milhões.
AUDITORIA – O parecer do Ministério Público de Contas (MPC) que deu origem à medida cautelar do TCE barrando as renovações dá atenção especial aos valores, tomando por base auditoria operacional do TCE. O relatório indica um resultado bem mais favorável ao Estado e, conforme o parecer do MPC, “quiçá, até em sinal oposto”. A posição é semelhante à do secretário-chefe da Casa Civil, Carlos Pestana. “Se existe algum passivo, ele é em favor do Estado e não das concessionárias”, defende.
A auditoria do TCE chama a atenção, por exemplo, para o método para reequilíbrio do fluxo de caixa, e orienta para a utilização da Taxa Interna de Retorno (TIR) não alavancada (que leva emconta a proposta comercial, sem a previsão de utilização de capitais de terceiros). Este tipo de TIR é o usado nos processos de concessões da União. “…qualquer análise que venha a ser realizada em torno dos eventos considerados como geradores de desequilíbrio dos contratos de concessão deverá ter, como ponto de partida, a aplicação da TIR não alavancada nos fluxos de caixa relativos a cada proposta comercial, porquanto a alavancagem do fluxo se constituir em metodologia tecnicamente insustentável para fins de cálculo do EEF dos contratos”, informa o relatório.
Em outro trecho, os técnicos ressaltam a necessidade de uma apuração definitiva dos valores e reforçam: “Também deverão ser incluídos nesse cálculo os impactos advindos da qualidade de pavimento das rodovias concedidas (de forma objetiva), além da suficiente ou insuficiente prestação de serviços ao usuário agravada pela denúncia dos convênios de delegação em agosto de 2009 e a consequente ausência de fiscalização a partir de então, com exceção do Polo de Gramado. A repercussão desses quesitos poderá acarretar o registro de desequilíbrio a favor do Estado/Usuários”.
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Concessões indevidas ao setor privado
Para além da Taxa Interna de Retorno, há alguns outros pontos nos contratos de concessão que também são pouco conhecidos da opinião pública. Relatório da Agergs datado de 2009 aborda tanto o modelo adotado no caso gaúcho como o chamado VDM (volume diário médio de veículos em cada trecho objeto de cobrança).
No caso do modelo, o relatório afirma que o RS transferiu ao setor privado rodovias cujas características econômicas recomendavam a manutenção direta pelo próprio Estado e aponta as consequências. “Comparado com as demais concessões rodoviárias realizadas no país, verifica-se que o caso gaúcho foi o único que criou o conceito de ‘Polo Rodoviário’ através da sistemática de subsídios cruzados entre trechos de diferentes rentabilidades econômicas. Além disso, o modelo gaúcho também foi o único a ser pactuado em um período de 15 anos, enquanto a média nacional foi superior a 20 anos de vigência. (…) Frisa-se que a experiência estadual foi um das únicas que não contemplou duplicações de trechos concedidos, contrapondo-se nesse quesito aos demais modelos já existentes no estado nesse período. Tais características incentivam a formação de tarifas mais elevadas”.
O relatório demonstra ainda que as propostas comerciais vencedoras resultaram em incrementos nas estimativas de receita superiores aos das estimativas de custo total. E que, em alguns casos, o incremento nas estimativas de receita chegou a ser acompanhado por variações negativas nas projeções de custos totais, o que sinaliza a disposição das empresas vencedoras em buscarem estruturas eficientes de custos. “Observa-se que as taxas internas de retorno, por serem flexíveis em relação aos percentuais apresentados nos Projetos Básicos de Exploração (formatados pelo Estado para o programa de concessões), foram majoradas em todas as propostas comerciais vencedoras. Considerando-se a utilização de capital de terceiros, verifica-se que o incremento das taxas internas de retorno é ainda mais significativo.
A rentabilidade média dos capitais investidos no conjunto dos Polos concedidos passa dos 17% inicialmente projetados para aproximadamente 25%”, indica o documento, ressalvando que a taxa Selic da época, os riscos regulatório e Brasil e a insipiência gaúcha no cenário de concessões rodoviárias contribuíram para as altas rentabilidades exigidas “pelos licitantes”.
Por fim, o relatório lembra que as concessionárias estabeleceram fluxos de caixa em suas propostas comerciais com estimativas próprias de demanda determinantes das taxas internas de retorno. E que diminuições no volume diário médio de veículos (VDM) decorrentes de fatos imprevistos, como paralisações judiciais e utilização de rotas de fuga, poderiam vir a ser entendidos como passíveis de reequilíbrio econômico-financeiro. Como ficou claro nos primeiros anos do programa, em seus cálculos as concessionárias superestimaram os VDMs, mesmo que já existissem contagens do poder concedente (o Estado) nos Projetos Básicos de Exploração muito mais próximas da realidade.
Empresas alegam passivo
Foto: Igor Sperotto
“As contas das empresas são mágicas e o passivo fictício foi uma grande chantagem, a última que restou na tentativa de prorrogar os contratos. Ora, prorrogar contratos sem fazer novas licitações é crime”, esbraveja o deputado federal Henrique Fontana (PT). Debruçado sobre o tema desde quando, em 2009, a ex-governadora Yeda Crusius (PSDB) tentou, sem sucesso, prorrogar antecipadamente os contratos que só vencem no ano que vem, Fontana avalia que as empresas precisam tornar públicos os números do prejuízo que dizem ter.
Avaliação semelhante faz o secretário estadual de Infraestrutura e Logística, Beto Albuquerque (PSB). Segundo ele, o Estado também prepara um inventário patrimonial e um levantamento técnico minucioso sobre o cumprimento dos contratos por parte das concessionárias e das obras de manutenção previstas. Ainda conforme o secretário, se há algum tipo de desequilíbrio, ele vale a partir de 2007, devido ao Termo Aditivo nº 1, assinado no governo Olívio Dutra (PT), quando ele, Beto, estava à frente da pasta dos Transportes. De acordo com o secretário, o TA1, como é chamado, zerou eventuais desequilíbrios até 2005 e foi revalidado depois pelo ex-governador Germano Rigotto (PMDB). “De fato o que está ocorrendo é que as empresas estão perdendo um negócio muito bom”, resume.
PASSIVO – O TA1, porém, está longe de ser unanimidade entre aqueles que comemoram o fim do atual modelo de concessão. Poucos lembram, mas foi o termo assinado no governo Olívio que estabeleceu, entre outros pontos, a bidirecionalidade na cobrança dos pedágios. Os contratos originais previam cobrança em sentido único. À época, a mudança já foi feita para “equilibrar” as contas das concessionárias.
Os representantes das concessionárias têm evitado a polêmica, mas prometem “cobrar” o passivo. Por enquanto, prosseguem as articulações de bastidores. E, em conversas informais, consideram que o governo está dando publicidade a um tema que, em sua avaliação, “deveria ser discutido dentro dos gabinetes”.
DIVERGÊNCIAS – Governo do Estado e concessionárias divergem sobre as datas dos términos dos contratos. O governo assegura que valem as datas em que eles foram assinados (o que estabelece o término no primeiro semestre de 2013) e as concessionárias defendem as datas de início das operações das praças (término no segundo semestre de 2013).O certo é que, quando as concessões acabarem, os trechos estaduais que integram o programa serão devolvidos à União, que não prevê outras concessões a curto prazo. As praças das vias estaduais passarão a ser controladas pela nova Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR), que licitará serviços como os de cobrança e limpeza. A exceção é a praça localizada na RS 122, entre as cidades de Caxias do Sul e Farroupilha. A “menina dos olhos” dos concessionários, hoje controlada pela Convias, registra um volume de tráfego próximo aos 20 mil veículos/ dia. Mesmo com a existência de um desvio onde, não raro, acontecem congestionamentos.
ORIGEM – A Lei Federal 9.277, de maio de 1996, criou a possibilidade de que a estados, municípios e ao Distrito Federal fossem delegados trechos de rodovias federais para inclusão em seus programas de concessão rodoviária.Nesse mesmo ano, o RS e a União firmaram convênios de delegação das rodovias federais que integrariam o Programa Estadual de Concessões Rodoviárias (PECR) e o Estado editou leis específicas que autorizaram a concessão dos serviços de operação, exploração, conservação, manutenção, melhoramentos e ampliação da capacidade das rodovias integrantes dos futuros polos rodoviários. O programa não previu a duplicação de qualquer trecho, concentrando-se nas atividades de conservação e manutenção. Os contratos com as empresas foram assinados em 1998.Na época, o então peemedebista Antônio Britto estava à frente do governo gaúcho. O secretário de Transportes era o hoje deputado federal José Otávio Germano (PP). E o Ministério dos Transportes comandado por outro gaúcho, o também deputado federal Eliseu Padilha (PMDB).