POLÍTICA

Indígenas na alça de mira

Bancada que defende interesses ruralistas colocou em curso a maior ofensiva contra as demarcações de terras de que se teve notícia desde o começo deste século
Por Alceu Luís Castilho e Fábio de Castro / Publicado em 20 de outubro de 2013
Foto: José Cruz/ABr

José Cruz/ABr

Mesmo com inúmeros protestos ao longo do ano e até mesmo com a ocupação do Plenário da Câmara dos Deputados por lideranças indígenas (em abril) contra proposta que transfere do Executivo para o Congresso a prerrogativa de definir as demarcações de terras indígenas, Eduardo Alves (PMDB), presidente da Câmara, instituiu a Comissão Especial para analisar a PEC 215, que trata do tema, no último dia 10 de setembro, na calada da noite

José Cruz/ABr

Está em curso no Brasil a maior ofensiva contra os direitos dos povos indígenas no século 21. Depois de se desdobrar para influenciar a reforma do Código Florestal, o movimento ruralista concentra agora seus esforços em projetos de lei voltados para bloquear novas demarcações.

As investidas pelas terras indígenas, orquestradas no Congresso Nacional com apoio das bancadas mais conservadoras, favorecem os interesses de setores ligados ao agronegócio, infraestrutura, mineração e ao próprio governo federal, empenhado em políticas que enxergam as demarcações como um obstáculo ao desenvolvimento.

Mas as armas dos ruralistas não se limitam a projetos de lei e à pressão política. Pelo contrário. Por um lado, intensifica-se neste momento a histórica violência contra os índios. Por outro lado, no campo simbólico, campanhas difamatórias procuram estigmatizar esses povos e jogar a população contra eles.

O relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil, publicado em junho pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mostra que o governo Federal estancou o processo de demarcação de terras: em 2012 apenas sete terras indígenas tiveram sua demarcação homologada no Brasil, enquanto 339 terras permanecem sem qualquer providência.

terras permanecem sem qualquer providência. No Congresso, latifundiários, empenhados em garantir mais terras para o agrobusiness, lutam para aprovar o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 215, que passa do Executivo para o Legislativo a função de homologar as demarcações de terras. Caso obtenham sucesso, o processo de demarcação fatalmente será bloqueado: a bancada ruralista – que já controla a Comissão da Agricultura e a Comissão da Amazônia – garantiu em setembro nada menos que 14 dos 16 nomes indicados pelos partidos para a Comissão das Terras Indígenas.

Enquanto isso, o número de casos de invasões, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio indígena passou de 42 em 2011 para 62 ocorrências em 2012. Os assassinatos de índios também aumentaram em 2012: 60 mortos, contra 51 em 2011. As ameaças de morte registradas quase dobraram, passando de 11 para 19 casos.

A violência é estratégica
Para o historiador Jorge Eremites de Oliveira, a ofensiva no Congresso e a escalada da violência fazem parte de uma estratégia de desmonte dos direitos conquistados pelos índios nas últimas três décadas. “A situação que vivemos hoje no Brasil não tem precedentes no período posterior ao processo de redemocratização do país. Somente durante o regime militar tivemos um contexto comparável em termos de violência e espoliação de direitos”, diz.

Eremites é professor de Antropologia Social e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Em sua análise, os ruralistas estão extremamente fortalecidos. Além de uma representação política desproporcional no Congresso Nacional, beneficiam-se de uma conjuntura política favorável: o Legislativo é dirigido por forças conservadoras às quais o Executivo se rende em nome da governabilidade.

“Os ruralistas contam hoje com o apoio da bancada evangélica, dos ministérios da Justiça, da Agricultura e da Casa Civil. Valem-se também do interesse eleitoral da base aliada do governo. Um caso típico é o da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, que confia no ataque às populações indígenas para conquistar o apoio dos ruralistas do Paraná, onde pretende se eleger governadora”, afirma Eremites.

Essa posição do governo gera mal-estar dentro da própria bancada petista. “O governo está vendido, se acovarda, não quer fazer uma disputa”, dispara o deputado Padre Ton (PT-RO), defensor dos povos indígenas. “O Ministério da Saúde teve coragem de disputar com o Conselho Federal de Medicina e alguns conservadores. Mas nessa área o governo não disputa. Tem medo de disputar com essa base que pressiona, chantageia”.

Modelo desenvolvimentista dá munição
Adriana Ramos, secretária executiva-adjunta do Instituto Sócio Ambiental (ISA), diz que a ofensiva ruralista pelas terras indígenas emprega a mesma estratégia utilizada durante os debates sobre o novo Código Florestal: um “rolo compressor parlamentar” montado para limitar o alcance da legislação dentro dos latifúndios. “O objetivo é claro”, resume. “Acabar com o processo de demarcação de novos territórios e limitar o alcance das leis ambientais”.

Essa estratégia, segundo ela, é perversamente coerente com a política desenvolvimentista do governo. “No Executivo, há interesse em disponibilizar esses territórios para grandes obras de infraestrutura e de mineração sem que os índios tenham direito de opinar”, diz Adriana.

É o que faz, por exemplo, a Portaria 303 da Advocacia Geral da União (AGU), que foi publicada em julho de 2012 e, depois de fortes protestos de indígenas, temporariamente suspensa. Caso entre em vigor, a medida permitirá intervenções militares e empreendimentos hidrelétricos, minerais e viários em terras indígenas sem consulta prévia aos povos, além de prever a revisão dos territórios já demarcados e homologados.

Para o secretário-executivo do Cimi, Cleber Buzatto, a PEC 215 é o principal instrumento dos ruralistas na ofensiva contra os povos indígenas. Mas, além dela e da Portaria 303 da AGU, há outras iniciativas como o Projeto de Lei Complementar 227, que tramita desde 2012. O projeto, considerado como a “legalização da grilagem”, vem sendo barrado graças à mobilização dos índios.

“Elaborado para regulamentar o uso de terras indígenas em situações extremas – como guerras ou epidemias – o projeto poderá permitir que os ruralistas legalizem latifúndios, assentamentos rurais, cidades, estradas e outros empreendimentos em terras indígenas”, diz.

Tramitam também a PEC 237 – que prevê a concessão de terras indígenas para a União, permitindo o uso comercial delas por produtores rurais – e o PL 1.610, que regulamenta a atividade mineradora em terras indígenas. Este projeto data de 1996, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), mas só agora ganha chance efetiva de ser aprovado. Jucá presidiu a Funai nos anos 1980, durante o governo Sarney, e autorizou a exploração de madeira em terras indígenas. “Agora quer abrir a porteira para a mineração”, diz Ivar Busatto, da Operação Amazônia Nativa (Opan). “E os impactos sociais antes, durante e depois das atividades são muito sérios”.

Cleber Buzzatto, do Cimi, conta que, além desses projetos de lei, há instrumentos de autoria do próprio Executivo, como a Portaria interministerial 419, de 2011, que pretende agilizar os procedimentos administrativos para a construção de empreendimentos que afetam as terras indígenas. “Existe uma articulação para manejar uma série de outros instrumentos administrativos e jurídicos, fechando o cerco contra os índios”, afirma. “Esse processo se intensificou a partir de 2012”.

Trata-se de um verdadeiro milagre da multiplicação dos projetos. “Fiquei sabendo que existe uma comissão da reforma da Constituição, com a relatoria do Romero Jucá”, conta o deputado Padre Ton. “Querem reformar o parágrafo que fala da mineração. Fomos pegos de surpresa por uma comissão feita na surdina. Esses parlamentares refletem o patrocínio dessas corporações. O governo não faz disputa por causa da chantagem desses grupos e da importância da mineração na balança comercial”.

Foto: José Cruz/ABr

José Cruz/ABr

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Índios se mobilizam para contra-atacar
Apesar das investidas frenéticas dos ruralistas, os ativistas mantêm o otimismo. “A situação atual só poderá ser contornada com uma forte mobilização da sociedade, que já está acontecendo”, diz Adriana Ramos. “Existe um risco real de um retrocesso histórico em termos de legislação, mas estamos confiantes na mobilização dos índios, povos tradicionais e quilombolas. Assim como a ofensiva ruralista recrudesceu, nossa mobilização se intensificou também”, acredita o secretário-executivo do Cimi.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) realizou em todo o Brasil, entre os dias 30 de setembro e 5 de outubro de 2013, a Mobilização Nacional Indígena. Mais informações no blog.

ENTREVISTA
Uma “crise Guarani”

Spensy Pimentel é antropólogo e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (USP). Em 2012, defendeu, no departamento de Antropologia da USP, a tese Elementos para uma teoria política Kaiowá e Guarani.

Extra Classe – Há de fato uma ofensiva ruralista pelas terras indígenas?
Spensy Pimentel – Certamente, há uma forte ofensiva ruralista neste momento. No fim da década de 1970, havia também uma investida contra os territórios indígenas, pautada pelo desenvolvimentismo que norteava as ações da ditadura. A reação a essa investida ocorreu na Constituição de 1988, que nasceu em um momento de efervescência democrática, com grande articulação dos movimentos sociais, incluindo os indígenas. O resultado foi uma legislação bastante avançada. O que temos agora é um ataque direto a esses direitos garantidos na Constituição.

EC – Por que esse quadro eclodiu agora?
Pimentel – O principal fator é o grande poder acumulado pelo setor do agronegócio, que tem uma representação política desproporcional. Além disso, nos últimos cinco anos, chegamos justamente ao ponto mais sensível da discussão sobre as demarcações de terras: as áreas disputadas pelos latifundiários. Estados onde há áreas em disputa, como o Paraná, Rio Grande do Sul e o Mato Grosso do Sul, foram empurrando com a barriga o prazo constitucional estabelecido para demarcação de terras. Esse prazo expirou em 1993. Tivemos uma combinação infeliz: os ruralistas estão fortalecidos e têm apoio do governo justamente no momento em que deveriam ser feitas as demarcações nas áreas mais disputadas. Além disso, a Funai, que há dois ou três anos atuava de forma muito parcial em favor dos fazendeiros, mudou de postura, pressionada pelo Ministério Público, e passou a trabalhar de forma mais atuante, como sempre deveria ter feito, enfrentando o passivo de demarcações nessas regiões. Esse também foi um fator que acirrou a ofensiva ruralista.

EC – Onde está o maior potencial de conflitos?
Pimentel – Hoje, 98,5% das terras indígenas demarcadas estão na Amazônia e 1,5% delas estão nas outras regiões do país. Por outro lado, cerca de 52% da população indígena está fora da região amazônica. Por isso, nessas áreas temos passivos de demarcação gigantescos. Quando olhamos para o Mato Grosso do Sul, vemos que é ali que está o maior passivo, assim como a maior fonte de confiitos violentos. Nessa região há grande concentração dos guarani-kaiowás, que são o segundo maior povo indígena do Brasil e o maior fora da Amazônia. Eu diria que, se essa crise tem um nome, o nome é “crise guarani”. Sem sombra de dúvida é o povo mais prejudicado. Mas também há grandes déficits de terras no Nordeste, envolvendo especialmente os pataxós e xavantes. Fora do Mato Grosso do Sul, o segundo foco de tensão é certamente a Bahia. Nesses dois estados vemos uma escalada da violência.

EC – Quem são os atores principais dessa ofensiva?
Pimentel – A bancada ruralista, que não envolve apenas fazendeiros, mas também muitos setores agregados. O agronegócio é um complexo agroindustrial que envolve uma série de multinacionais, que têm interesse em vender insumos, serviços e tecnologia. Também temos setores do governo com grandes interesses em tocar obras que afetam áreas indígenas – como hidrelétricas, mineração e estradas. Finalmente temos lateralmente a bancada dos evangélicos, que é ideologicamente aproximada dos ruralistas.

Foto: Cimi/Divulgação

Cimi/Divulgação

Guarani Kaiowá retomam terras no MS, na região de Dourados

Cimi/Divulgação

Campanha difamatória
Uma das principais estratégias dos ruralistas para avançar sobre as terras indígenas consiste em uma campanha difamatória sistemática contra os indígenas, reforçando preconceitos racistas. De acordo com o professor Pedro Funari, do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), as escolas poderiam contribuir para combater esse discurso, mas, por conta de um déficit na formação dos professores, correm o risco de fazer justamente o contrário.

Funari, que é arqueólogo, lançou em 2012, em co-autoria com a espanhola Ana Piñon, o livro A temática indígena – subsídio para os professores. De acordo com ele, a questão indígena de modo geral é pouco trabalhada em sala de aula. “O professor não recebe essa formação. Alguns livros de geografia e história têm referências mais ou menos consistentes sobre os indígenas do passado e do presente. Mas os professores têm pouquíssimo acesso à informação adequada e por isso pouco sabem sobre as disputas”, afirma.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Eduardo Alves e Gleisi Hoffmann, durante audiência sobre demarcação de terras indígenas (em maio)

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

No caso da atual ofensiva ruralista, segundo Funari, a velocidade dos acontecimentos deixa os professores completamente à margem da discussão. “Devido a essa lacuna na formação do professor sobre a questão indígena, ele pode acabar reproduzindo preconceitos divulgados pelos ruralistas, especialmente nas áreas próximas aos conflitos. Isso é preocupante. O conflito também se dá no campo simbólico e é aí que precisamos atuar”, explica.

A solução seria seguir o exemplo da introdução da história da África nas escolas: “A cultura afro-brasileira conseguiu uma razoável valorização e legitimação. O brasileiro percebe claramente o que é afro-brasileiro em seu cotidiano. No caso indígena, houve um apagamento mais profundo. As pessoas não percebem a ligação de seus costumes, alimentação e idioma com os índios. Para vencer essa batalha simbólica, precisamos mudar o ensino”.

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