POLÍTICA

Liberdade vigiada na internet

Lei elaborada por vários setores da sociedade e considerada modelo no mundo ficou parada na Câmara por dois anos graças ao lobby de operadoras de telecomunicações
Por César Fraga / Publicado em 13 de novembro de 2013
Discurso da presidente Dilma Rousseff na ONU retirou Marco Civil da Internet do limbo

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Discurso da presidente Dilma Rousseff na ONU retirou Marco Civil da Internet do limbo

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

O Marco Civil da Internet foi enviado à Câmara dos Deputados em agosto de 2011, permanecendo basicamente dois anos e dois meses sem acordo sobre o texto que irá à votação, provavelmente em novembro, pois existe forte resistência das empresas operadoras de telecomunicações. Meses de debate não resultaram em consensos. O relatório está pronto para ser votado há mais de um ano, no entanto, só foi retirado do limbo depois dos escândalos de espionagem reveladas na esteira do Caso Snowden.

Após as denúncias de espionagem dos EUA sobre o governo brasileiro, a presidente Dilma Rousseff, em seu discurso na ONU, em 24 de setembro, apresentou a proposta de Marco Civil da Internet brasileira como modelo, se aprovado no Congresso, a ser seguido pelo mundo. Com base nisso, a presidência pediu que os parlamentares analisassem o projeto em regime de urgência, prazo que se esgotou no dia 28 – data de fechamento desta edição. A urgência foi determinada imediatamente após vir à tona que a Agência Nacional de Segurança norte- -americana estaria espionando cidadãos brasileiros, empresas e a própria presidente e seu staff.

Esgotado o prazo, a proposta de Lei do Marco Civil da Internet trancou a pauta da Câmara Federal. O texto contém alguns temas polêmicos. São eles, neutralidade da rede e privacidade dos usuários. Um terceiro ponto, igualmente controverso, será debatido em lei específica, que trata da retirada de conteúdos protegidos por direito autoral.

Mercado
O debate sobre o Marco Civil se dá num cenário de crescimento do número de usuários daweb. Segundo estudo divulgado em julho pelo Ibope, o país tem 102,3 milhões de usuários de internet de todas as idades. O levantamento inclui pessoas de 16 anos ou mais com acesso em qualquer ambiente, além de crianças e adolescentes (de 2 a 15 anos de idade) com acesso em casa. Se considerados internautas com acesso em casa ou no trabalho, somente em abril de 2013 o número fica em 72,7 milhões. Janette Shigenawa, diretora do Ibope, define o fenômeno como “a massificação do acesso e um processo de democratização da informação, cultura e educação”.

Porém, no que depender do lobby das empresas que operam as telecomunicações – estão entre as grandes financiadoras de campanhas políticas – no Brasil, essa democratização está com os dias contados, pois o crescimento no número de usuários também significa um mercado a ser explorado.

Clima de desconfiança e pontos polêmicos
“Não sabemos que texto será votado. Se o que enviamos à presidência e que seguiu para o Congresso ou outro que contemple o lobby das operadoras”, provoca o sociólogo Sergio Amadeu, membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI. br) e que participou da elaboração da proposta, em 2009, com representantes de diversos setores da sociedade, incluindo Ministério da Justiça, universidades, especialistas, movimentos sociais, ativistas da web, juízes e até mesmo da polícia. A própria internet serviu para agrupar as propostas e sínteses que se transformaram em texto de lei enviado ao Parlamento, modelo democrático e considerado exemplo no mundo.

O relator do projeto na Câmara é o deputado Alessandro Molon (PT/RJ), que sintetiza a polêmica em dois pontos principais. A neutralidade da rede, exigência de que os provedores de conexão não discriminem os pacotes de dados que os usuários enviam ou recebem, independente da origem, destino ou conteúdo. As empresas de telefonia querem cobrar mais, dependendo da origem de determinada informação ou do tipo de informação acessada. “Se for voz, querem cobrar um preço, música outro, e assim por diante”. Outro ponto polêmico é referente à privacidade do usuário. Já que o Marco proibiria uma série de atividades de “bisbilhotagem” daquilo que é acessado, para que isso seja vendido na internet como marketing direcionado. “Por essa razão queremos proteger a privacidade do internauta, proibindo que as empresas de telefonia façam isso. E elas mais uma vez ficam contra o projeto, porque entendem que isso vai diminuir os seus lucros”, explica o relator.

Direitos Autorais
No que se refere à retirada de conteúdos protegidos por direitos autorais, a regulamentação ficará a cargo da reforma da Lei de Direitos Autorais, também a ser votada a partir de novembro. “Não é verdade que o texto do Marco Civil autorize a notificação e a retirada de conteúdos, apenas deixa claro que a regra geral estabelecida para liberdade e expressão e direito de opinião não altera a proteção de direito autoral, o que se fará em lei específica”, diz Molon. Para o relator, tratar desse tema no Marco Civil impediria a votação. “Tem gente que quer misturar esse tema ao Marco Civil para embaralhar e evitar a ida da matéria ao plenário. E não me refiro a militantes e setores da sociedade organizada que lutam pela liberdade na rede”, alerta. “Não se pode esperar do Marco Civil da internet o que não se consegue em quase nenhum projeto, que é consenso absoluto. Será resolvido no voto”, justifica-se.

Proposta define regras para internautas e empresas
De acordo com o texto do Marco Civil da Internet, os usuários terão direito à não suspensão dos serviços de conexão à internet, exceto por falta de pagamento; manutenção da qualidade da conexão contratada; informação clara e completa nos contratos de prestação de serviço; privacidade dos registros de conexão, excetuando os casos previstos em lei. Os provedores de internet ficam obrigados a garantir a neutralidade da rede; manter os registros de conexão do usuário durante um ano e em sigilo; e ficam proibidos de guardar qualquer registro de acesso do usuário a aplicações.

O Marco Civil não proibirá a venda de pacotes de acesso à internet. Depois da aprovação permanecerá a possibilidade de escolher, por exemplo, entre bandas de 1 a 20 megabytes ou mais. O que ele proíbe é que dentro da modalidade que é paga, a operadora escolha o que o usuário pode ou não acessar ou regular a velocidade conforme o conteúdo. “Se o usuário paga por 10 megabytes, aliás, ele paga 10 e recebe dois. Esse é problema da internet brasileira: a péssima qualidade. Possui custo alto e qualidade ruim”, critica Molon. “É com isso que elas deveriam estar preocupadas, em oferecer uma boa qualidade de internet para os brasileiros e não em querer dizer o que o internauta pode com seus dois ou 20 megabytes contratados. A questão da neutralidade, portanto, é inegociável para mim como relator e para a presidente Dilma”, afirma. “Já fui a vários países para falar do Marco Civil, e ele já é referência em países desenvolvidos como exemplo de lei boa”.

Controvérsias, espionagem e limitações
Entre os defensores de uma internet livre e dos direitos dos internautas está Marcelo Branco, reconhecido militante pró software livre. “Foram apresentadas inúmeras emendas e até agora nós não temos uma sinalização do relator de que manterá o texto encaminhado pela presidência à votação”, critica. Para Branco, especialista em Tecnologia da Informação, software livre, criptografia, garantias legais e contraespionagem são o que pode ser feito para diminuir a vulnerabilidade de empresas à espionagem de dados. Apenas soluções técnicas não serão suficientes para resolver o problema da segurança, mas inteligência para se antecipar constantemente aos ataques que temem em se aperfeiçoar conforme a segurança melhora.

Ele também defende o uso de programas de código aberto, e órgãos de inteligência capazes de prever e evitar interceptações, além de uma legislação que torne o vigilantismo prática ilegal. A aprovação de um Marco Civil da Internet seria um avanço na garantia dos direitos dos usuários à privacidade, além de uma política de regramento claro de contraespionagem. “Conforme as denúncias de Snowden, a vigilância de dados eletrônicos se utiliza da colaboração de empresas de telecomunicação. Uma lei que pudesse impedi-las terminantemente de repassar informações aos órgãos de inteligência brasileiros ou estrangeiros, com punições duras, poderia inibir a prática. Deve haver uma proibição explícita ao grampo”, conclui.

Em linhas gerais, o texto que está disponível para consulta é visto com bons olhos pela comunidade da internet no país, sobretudo por representar um avanço em privacidade. Mas está longe do ideal do ponto de vista de ciberativistas. “O Marco Civil certamente considerará crime a violação de uma série de direitos ao sigilo das comunicações”, explica o sociólogo Sérgio Amadeu, que além de integrar o CGI.br, é professor da Universidade Federal do ABC. Ele destaca a questão da remoção de conteúdo sem ordem judicial. A discórdia está no parágrafo 2º do artigo 15, que, segundo Amadeu, diferente de que afirma o relator, atende a uma exigência da indústria fonográfica ao permitir que conteúdos supostamente contrários aos direitos autorais sejam sumariamente tirados do ar. “Isso vai gerar uma onda de denúncias vazias”, prevê, lembrando que a lei brasileira de propriedade intelectual tem sido utilizada para censurar iniciativas políticas que se utilizam da internet para fazer contraponto ao poder estabelecido.

As telecom resistem
O relatório está pronto para ser votado há mais de um ano, mas só foi retirado da inércia depois do escândalo de espionagem, furando a resistência do lobby das telecom à votação. Segundo Alessandro Molon, “o problema está na resistência que o setor dos provedores de conexão, que são as empresas de telefonia, donas dos cabos de fibra ótica e que vendem para cada um de nós a conexão à internet. Eles entendem que da forma como está garantida a neutralidade da rede no Marco Civil os seus lucros ficam limitados. E também as regras de privacidade, que protegem o internauta, limitam uma série de negócios que eles gostariam de poder fazer. Por exemplo, a análise da navegação dos internautas e a venda dessas informações para marketing dirigido. O problema é que isso viola a privacidade. Isso foi feito no Brasil recentemente e não me refiro ao escândalo de espionagem, que foram celebrados por empresas de telefonia no Brasil, com empresas que analisaram a navegação dos internautas sem que sequer tivessem sido informados de que sua navegação estava sendo analisada, bisbilhotada e vendida. Isso é proibido no Marco Civil e fere interesses. E existe um pressão muito grande para que o projeto não seja aprovado desse jeito”, adverte o relator.

Prioridade ao software livre e censura na web
Tramita também na Câmara PL de autoria do agora senador Valter Pinheiro (PT/BA), e encaminhado quando ele era deputado, que prevê o uso prioritário de software livre por órgãos públicos. É um projeto que se soma ao Marco Civil, segundo Molon. “Órgãos de outros países usam software livre, pois podem ser auditados. A própria Casa Branca e o Pentágono não usam software proprietário. Usam software livre por questões de segurança”, justifica.

Outro ponto importante para o relator é a responsabilização pelo conteúdo publicado. Tratase de matéria sugerida pelo Judiciário. Para evitar que qualquer empresa que dá suporte ou rede social continue praticando uma espécie de censura privada, como ocorre hoje, retirando do ar conteúdos que representam direito de livre expressão dos usuários brasileiros, o Marco Civil estabelece uma regra clara, onde atualmente não existe legislação. Os provedores de aplicação, como são chamados, passam a ser responsáveis pelo conteúdo postado por terceiros somente a partir do momento em que a Justiça determina que “aquele conteúdo deve ser removido e ele não remover”.

Quando questionado do porquê, ainda não se sabe ao certo qual texto será submetido à votação, Molon é vago quanto ao teor final do que será votado. Restringe-se a afirmar “que todos os textos até o momento da votação sofrem modificações e são aperfeiçoados”.

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