POLÍTICA

O pacote que não leram e não gostaram

PL 4.850/16 estabelece medidas de combate à impunidade, à corrupção e também limita abusos de poder, mas, polemizado na mídia gera rejeição popular e reações na Lava Jato
Por Flavia Bemfica / Publicado em 1 de dezembro de 2016
O pacote que não leram e não gostaram

Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados

Na madrugada do dia 30 de novembro deputados votaram medidas anticorrupção modificando o texto sugerido pelo MPF

Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados

Desde a madrugada de 30 de novembro, milhões de brasileiros renovaram sua indignação com os políticos e, em particular, com a Câmara dos Deputados. Nas ruas, cidadãos ‘de bem’ proferem ofensas e ironias contra o projeto ‘salva ladrão’. Promotores do Ministério Público Federal (MPF) que participam das investigações da Operação Lava Jato cunharam um termo dramático – Lei do Terror – para definir o texto do ‘Pacote Anticorrupção’ aprovado pelos deputados naquela madrugada, e ameaçaram renunciar. As informações dos meios de comunicação tradicionais, e mais ainda as das redes sociais, repetem que o texto original proposto pelo MPF foi desfigurado pela Câmara, ajudando a aumentar a tensão. Segundo o jurista  Aury Lopes Júnior, da PUCRS “não é nenhuma surpresa que o Congresso tenha barrado várias das propostas do MPF por flagrante ilegalidade de parte e por manifesto equívoco de outras. Por exemplo: é óbvio que juízes e promotores têm que ter responsabilidade sobre seus atos”, explica. Já o advogado Norberto Flach, professor de hermenêutica jurídica e ética profissional da Fundação Escola Superior do Ministério Público considera que o próprio MPF aproveitou o  ambiente de indignação  para empurrar no Congresso um pacotão que é muito mais abrangente  (leia as entrevistas completas nesta matéria).

O pacote, na verdade o Projeto de Lei (PL) 4.850/16, estabelece medidas de combate à impunidade e à corrupção. O problema é que, quando questionadas sobre o que as deixa revoltadas no texto aprovado pelos deputados, as pessoas não sabem responder com precisão, já que não leram os documentos. Nem o original, gestado pelo MPF e apelidado, pelo próprio, de “10 Medidas Contra a Corrupção”. Nem o substitutivo aprovado pela Comissão Especial formada na Câmara que proferiu um parecer sobre as propostas, e que teve como relator o deputado federal gaúcho Onyx Lorenzoni (DEM). E nem o texto final aprovado no plenário da Câmara.

Não há informações disponíveis sobre se os 2,4 milhões de cidadãos signatários da petição pública para a qual o MPF recolheu assinaturas (de forma presencial e on-line) em todo o Brasil para encaminhar o projeto conhecem o documento original na íntegra. A petição on-line, por exemplo, resume a questão em 12 linhas. Se o signatário estiver interessado, há um link para o site criado pelo MPF para explicar as “10 Medidas”. No site, se quiser, o internauta pode conhecer melhor as medidas, clicando em um dos ícones principais. Ele abre outros 10 ícones. É possível clicar em cada um, que traz as explicações do MP sobre aquele ponto. Ao final da explicação, se der mais um clique, o usuário acessa a proposta legislativa. Como é comum nessas situações, muitas vezes a proposta legislativa prevê alteração em determinada lei ou decreto, estabelecendo que artigos ou incisos passarão a ter outra redação. Mas a norma original precisa ser buscada separadamente, fora do site, se o usuário quiser fazer comparações para entender as mudanças.

O projeto original encaminhado pelo MPF para apreciação da Câmara não traz 10 e sim mais de uma centena de propostas, dispostas em 67 artigos e 92 páginas, das quais 60 são de justificativa do texto. São previstas mudanças em leis, no Código Penal e no Código do Processo Penal que atingem não só crimes de corrupção, mas outros como tráfico de drogas, contrabando e comércio de armas, e alteram a concessão de habeas corpus. O substitutivo aprovado na Comissão Especial tem 104 artigos, dispostos em 82 páginas, e previa a instauração do Programa de Proteção e Incentivo a Relatos de Informações de Interesse Público, que deixou especialistas em direitos constitucionais receosos, e acabou suprimido por inteiro da versão aprovada em plenário.

Apesar do clamor popular, e ao contrário do que informaram diversos meios de comunicação ao longo dos debates, de que especialistas tinham críticas pontuais ao projeto, no meio acadêmico e entre juristas ele vinha sendo fortemente questionado. Agora, a aposta de criminalistas e constitucionalistas é que, conforme o que ocorrer no Senado, há grandes chances de que parte das propostas tenha sua constitucionalidade questionada por meio de ações junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Caixa dois vira crime hediondo
Apesar da enxurrada de notícias dando conta de que os deputados aprovaram as mudanças na madrugada com o intuito de “salvar a própria pele”, eles mantiveram no texto o endurecimento das punições para o crime de Caixa 2. Confira:

Art. 15. A Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 299-A e 354-A:

“Art. 299-A. Negociar ou propor a negociação a eleitor, com candidato ou seu representante, em troca de dinheiro, dádiva ou qualquer outra vantagem, para dar voto:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Caixa dois eleitoral.

Art. 354-A. Arrecadar, receber ou gastar, o candidato, o administrador financeiro ou quem de fato exerça essa função, ou quem atuar em nome do candidato ou partido, recursos, valores, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela lei eleitoral:

Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

1º As penas serão aumentadas de um terço se os recursos, valores, bens ou serviços de que trata o caput forem provenientes de fontes vedadas pela legislação eleitoral ou partidária.

Comissões de até 20% para o “reportante do bem”
O texto final do Pacote Anticorrupção aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados suprimiu do projeto o Título III do substitutivo aprovado na Comissão Especial da Câmara que apreciou o projeto original. O Título III era o que previa a instauração do Programa de Proteção e Incentivo a Relatos de Informações de Interesse Público que, nas notícias, acabou reduzido à criação da figura do ‘reportante do bem’.

No substitutivo, o Programa havia ganho destaque, sendo disposto em 50 artigos, divididos em cinco capítulos e mais cinco sessões, e que ocupavam 25 das 82 páginas do documento. Entre outras ações, o Programa instituía o reportante como “a pessoa natural que, isoladamente ou em conjunto, relatar informações fundadas em elementos suficientes que permitam concluir, de forma razoável, pela ocorrência das ações ou omissões previstos neste artigo”. Também criava as Comissões de Recebimento de Relatos, consideradas como “serviço essencial para o exercício dos direitos de cidadania, da liberdade de expressão, de acesso à informação, e para o cumprimento do dever legal de transparência pública.” Entre outras atribuições, as comissões poderiam “manter interlocução permanente com o reportante e intermediá-la com outros órgãos ou entidades, quando necessário”. Já o reportante, em havendo necessidade, poderia “ser solicitado a contribuir com a apuração da ocorrência relatada, fornecendo novas informações e auxiliando na coleta de informações ou provas.”

O texto previa, por fim, que o reportante tivesse direito a receber “retribuição no percentual de 10% (dez por cento) a 20% (vinte por cento),” sobre valores recuperados pelo erário a partir de suas informações, e obedecidos alguns critérios referentes a valores e ineditismo dos relatos.

O que causou a ira do judiciário e do MPF
Uma alteração incomodou muito integrantes do Poder Judiciário e procuradores da Operação Lava Jato, que idealizaram as medidas originais. Por ela, magistrados e procuradores passam a ser responsabilizados nos casos de abuso de autoridade. Apesar da grita do Judiciário e do MP, a medida, na visão de especialistas, ajuda no equilíbrio entre os poderes em um momento do país no qual o Judiciário se mostra cada vez mais forte, freia abusos que podem ocorrer com seu crescente empoderamento e estabelece novas regras para deixar claro que membros do Judiciário e do MP também são passíveis de sanções.

Juiz Sérgio Moro foi ao Senado apresentar uma proposta de alteração ao texto durante audiência sobre o tema , ao seu lado Roberto Requião, relator da matéria

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Juiz Sérgio Moro foi ao Senado apresentar uma proposta de alteração ao texto durante audiência sobre o tema , ao seu lado Roberto Requião, relator da matéria

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Menos de dois dias após a aprovação do texto, o juiz Sérgio Moro sugeriu alterações e afirmou que o momento é inadequado para a discussão das mudanças. Se as normas já estivessem em vigor, várias das condutas de Moro seriam passíveis de questionamento judicial. A maior parte das regras está disposta no Título III do texto aprovado pelo Plenário da Câmara, e intitulado: Da Responsabilização dos Agentes Públicos por Crime de Abuso de Autoridade. As normas estão previstas nos artigos 8º, 9º, 19º e 23º do projeto. Confira:

CAPÍTULO I

DOS MAGISTRADOS

Art. 8º Constitui crime de abuso de autoridade dos magistrados:

I – proferir julgamento, quando, por lei, seja impedido;

II – atuar, no exercício de sua jurisdição, com motivação político-partidária;

III – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo;

IV – proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções;

V – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo de magistério;

VI – exercer atividade empresarial ou participar de sociedade empresária, inclusive de economia mista, exceto como acionista ou quotista;

VII – exercer cargo de direção ou técnico de sociedade simples, associação ou fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de associação de classe e sem remuneração;

VIII – receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;

IX – expressar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.

1º Aos crimes a que se refere este artigo serão cominadas as penas de reclusão de seis meses a dois anos e multa.

2º Observadas as regras de competência previstas na Constituição Federal, qualquer cidadão pode representar contra membro da magistratura perante o tribunal ao qual está subordinado o magistrado.

3° Se a representação for contra juiz do trabalho ou juiz militar federal, a denúncia será encaminhada ao respectivo Tribunal Regional Federal; se for contra juiz militar estadual, ao respectivo Tribunal de Justiça.

4° A representação, assinada pelo representante com a firma reconhecida, deve ser acompanhada dos documentos que a comprovem ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com a indicação do local onde possam ser encontrados.

5° Os crimes desta Lei serão processados por ação penal pública, podendo o lesado pelos atos abusivos oferecer queixa subsidiária, se o Ministério Público não intentar a ação pública no prazo legal.

6° A Ordem dos Advogados do Brasil e organizações da sociedade civil constituídas há mais de um ano e que contenham em seus estatutos a finalidade de defesa de direitos humanos ou liberdades civis serão igualmente legitimadas a oferecer a queixa subsidiária.

 

CAPÍTULO II

DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Art. 9º São crimes de abuso de autoridade dos membros do Ministério Público:

I – emitir parecer, quando, por lei, seja impedido;

II – recusar—se à prática de ato que lhe incumba;

III – promover a instauração de procedimento, civil ou administrativo, em desfavor de alguém, sem que existam indícios mínimos de prática de algum delito;

IV – ser patentemente desidioso no cumprimento de suas atribuições;

V – proceder de modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo;

VI – receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais;

VII – exercer a advocacia;

VIII – participar de sociedade empresária na forma vedada pela lei;

IX – exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo de magistério;

X – atuar, no exercício de sua atribuição, com motivação político-partidária;

XI – receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei;

XII – expressar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de atuação do Ministério Público ou juízo depreciativo sobre manifestações funcionais, em juízo ou fora dele, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.

1º Aos crimes a que se refere este artigo serão cominadas as penas de reclusão de seis meses a dois anos e multa.

2º Observadas as regras de competência previstas na Constituição Federal, qualquer cidadão pode representar contra membro do Ministério Público perante o tribunal da jurisdição ao qual está vinculado.

3º A representação, assinada pelo representante com a firma reconhecida, deve ser acompanhada dos documentos que a comprovem ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com a indicação do local onde possam ser encontrados.

4° Os crimes desta Lei serão processados por ação penal pública, podendo o lesado pelos atos abusivos oferecer queixa subsidiária, se o Ministério Público não intentar a ação pública no prazo legal.

5° A Ordem dos Advogados do Brasil e organizações da sociedade civil constituídas há mais de um ano e que contenham em seus estatutos a finalidade de defesa de direitos humanos ou liberdades civis serão igualmente legitimadas a oferecer a queixa subsidiária.

  • Art. 19. Constitui crime a representação por ato de improbidade ou a propositura de ação contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor o sabe inocente ou pratica o ato de maneira temerária.
  • Pena – reclusão de seis meses a dois anos e multa.
  • Parágrafo único. Além da sanção penal, o denunciante ou membro do Ministério Público está sujeito a indenizar o denunciado pelos danos materiais, morais ou à imagem que houver provocado.”(NR)
  • Art. 23. O art. 18 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985 – Lei da Ação Civil Pública, passa a vigorar com a seguinte redação:
  • “Art. 18. Nas ações de que trata esta Lei, quando propostas temerariamente por comprovada má-fé, com finalidade de promoção pessoal ou por perseguição política, haverá condenação da associação autora ou membro do Ministério Público ao pagamento de custas, emolumentos, despesas processuais, honorários periciais e advocatícios, sem prejuízo da responsabilidade civil por danos provocados ao réu.”(NR)

Audiência no Senado dividiu opiniões na tarde do dia 1º

Divergências sobre se é oportuno reformular a lei que pune o abuso de autoridade quando há polarização acerca da Operação Lava Jato, e tendo em vista a gama de parlamentares investigados, marcaram as manifestações de senadores, na quinta-feira, 1º de dezembro, na segunda sessão temática do Senado sobre projeto que atualiza essa legislação. O relator do texto (PLS 280/2016), senador Roberto Requião (PMDB-PR), vê o momento como uma oportunidade para que o Congresso possa corrigir uma lei aprovada no regime militar e que não protege o cidadão contra abusos do poder público.

Ele adiantou que buscará, em seu relatório, garantir a independência da magistratura, mas rejeitará medidas que possam favorecer exageros dos agentes de Justiça. “Não podemos nem imaginar prejudicar o tipo de investigação que se realiza no Brasil hoje, mas não vamos transformar essa oportunidade, esta crise, em um espaço para avanços corporativos, para viabilizar uma legislação que contenha os abusos”, observou.

Requião diz que não aceitará a pressão de propostas corporativistas, mas que acatará sugestão de Moro

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Requião diz que não aceitará a pressões corporativistas, mas que acatará sugestão de Moro

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Requião anunciou que irá incorporar em seu relatório sugestão apresentada pelos juízes Sérgio Moro e Silvio Rocha, de explicitar na nova lei que a divergência na interpretação da legislação penal e na avaliação de provas não configura crime. Os magistrados participaram da sessão em Plenário, assim como o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

ENTREVISTA 1 – Quem tem poder precisa ter responsabilidade
O jornal Extra Classe ouviu o jurista Aury Lopes Júnior , doutor em Direito Processual Penal e professor titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS.

Extra Classe – Qual sua avaliação sobre as mudanças que a Câmara fez no Pacote Anticorrupção?
Aury Lopes Júnior – Não é nenhuma surpresa que o Congresso tenha barrado várias das propostas por flagrante ilegalidade de parte e por manifesto equívoco de outras. Por exemplo: é óbvio que juízes e promotores tem que ter responsabilidade sobre seus atos. Isto é imprescindível. Precisamos disso inclusive para ter uma estrutura democrática. E não é verdade que isso vai acabar com a Lava Jato. Não vai. E não vai acabar com investigação. Isto é um discurso falacioso. Quem tem poder precisa ter responsabilidade e precisa responder na medida do seu abuso. Isto é democrático.

EC – As mudanças aumentavam os poderes do Ministério Público?
Lopes Júnior – Existe um grande equívoco no projeto do Ministério Público. Não são 10 medidas, são dezenas, e elas afetam o Direito Penal e o Processo Penal. Além disso, não são apenas contra a corrupção. Isso é uma manipulação discursiva, porque as mudanças alteram o Processo Penal para qualquer crime, e isso não foi falado para os 2,4 milhões de pessoas que assinaram, sem ter lido o que assinaram. A imensa maioria das medidas propostas pelo MPF é um processo ‘a la carte’ para atender aos interesses do MPF. E isto viola o equilíbrio do processo como um todo. Muitas das medidas eram flagrantemente inconstitucionais. A comunidade acadêmica já havia se manifestado contra uma grande gama delas, por sua ilegalidade.

EC – O endurecimento de penas não ajudaria a combater a corrupção?
Lopes Júnior – 
Quem trabalha com direito penal sabe que é simbólico e equivocado você querer fazer mudança na legislação, no caso da corrupção querer aumentar pena e transformar em hediondo. Se isso fosse um fator que realmente diminuísse a prática de crimes, não teríamos mais estupros no Brasil, porque é hediondo desde sempre. Temos estupros, homicídios, tráfico de entorpecentes, que é equiparado a hediondo. E nunca diminuiu, sempre aumenta. Resumindo, o rótulo de hediondo é simbólico. O caminho do combate à corrupção passa por outras coisas que não o direito penal simbólico e reducionista de mero e simples aumento de pena e rótulo de hediondo.

EC – O senhor pode explicar como as medidas afetariam outras questões que não a corrupção?
Lopes Júnior – A redução do campo de abrangência do habeas corpus, por exemplo, é um erro gigantesco. Ela ia punir não só a corrupção, mas qualquer crime e qualquer pessoa. Ia afetar, em grande medida, a população pobre do Brasil. A restrição de recursos é outro problema. Sim, o sistema de recursos brasileiros deve ser rediscutido, como já é no Congresso, na reforma do Código do Processo, que é para reformar todo o Código. Eu inclusive participei da comissão que revisou o projeto, que é muito mais abrangente e prevê uma reestruturação do sistema recursal. Isso era válido. Agora, o que o MP estava fazendo era uma restrição do sistema conforme o seu gosto. Isto não é democrático e nem constitucional. A questão do informante, ele ter recompensa financeira, seria um erro. Ele de alguma maneira ser estimulado, dentro de uma política de boas práticas, junto com o compliance, e a lei que já existe anticorrupção empresarial, seria interessante. Mas precisava ter sido melhor desenhada, melhor discutida e melhor circunscrita, para não virar um denuncismo irresponsável e uma estrutura de Santa Inquisição. Existe a figura, que não é um delator, é uma testemunha que vai fazer essa informação qualificada, ok. Isso pode ser estimulado, mas não pode virar uma estrutura perversa. Entrou de forma prematura. Já a banalização da prisão cautelar, e, principalmente, para recuperar valores, é absolutamente inconstitucional.

EC – Está havendo uma simplificação, uma espécie de discurso unificado, que não deixa muito espaço para contrapontos às medidas desejadas pelo Ministério Público?
Lopes Júnior – Quero deixar bem claro que o fato de eu criticar veementemente o pacote do MP não significa que eu esteja a favor da corrupção. Ninguém é a favor da corrupção, mas todo mundo que critica as medidas está sendo rotulado de permissivo com a corrupção, ou de estar pregando impunidade. Não se trata de impunidade. Punir é necessário, mas é preciso respeitar a Constituição e as regras do jogo. Não pode ser vale-tudo. E o que o MP estava propondo era um vale-tudo. A critério dele. Então, vejo essa derrubada do pacote na madrugada com aspectos positivos e outros negativos porque algumas questões poderiam ser melhor discutidas. Mas o MP colheu o que plantou. Fizeram algo correndo, no impacto midiático, populista, com populismo penal, populismo processual, sem técnica, e sem um debate político sério. Pode-se mudar, mas as coisas precisam ser bem feitas.

EC – O que é possível esperar após as mudanças?
Lopes Júnior – 
O Congresso deu uma resposta em grande medida correta. E agora o Ministério Público Federal vai tentar jogar a opinião pública contra o Parlamento. Já começou. É uma ambição de legislar de alguém que é uma parte no processo. Com o mesmo status da outra parte. Não é nem mais e nem menos do que os advogados. Vendem o pacote como algo que vai acabar com a corrupção, mas não vai acabar com a corrupção e não é só contra a corrupção. E para cada um Marcelo Odebrecht que se prender, haverá milhares de Joões, Marias, Antônios e Pedros anônimos e pobres que vão pagar o preço por um processo desequilibrado e injusto. É disto que se trata.

COMO ERA E COMO FICOU
Além de todas as medidas que ganharam destaque na mídia, o texto original do Ministério Público Federal (MPF) previa várias outras ações a serem adotadas por outros poderes ou por instituições privadas que intensificavam a presença e o poder do MP na vida dos cidadãos. Confira alguns exemplos:

  • Artigo 20
  • 3º As Instituições Financeiras manterão setores especializados em atender ordens judiciais de quebra de sigilo bancário e rastreamento de recursos para fins de investigação e processo criminais, e deverão disponibilizar, em página da internet disponível a membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e à Polícia Judiciária, telefones e nomes das pessoas responsáveis pelo atendimento às ordens previstas no caput, incluindo dados para contato pessoal em finais de semana e em qualquer horário do dia ou da noite.
  • 4º Caso não se observe o prazo deste artigo, sejam encaminhadas as informações de modo incompleto, ou exista embaraço relevante para contato pessoal com os responsáveis pelo cumprimento das ordens judiciais, o juiz aplicará multa no valor de mil reais a dez milhões de reais por episódio, graduada de acordo com a relevância do caso, a urgência das informações, a reiteração na falta, a capacidade econômica do sujeito passivo e a pertinência da justificativa apresentada pela instituição financeira, sem prejuízo das penas do crime de desobediência que, neste caso, serão de um a quatro anos de reclusão.

COMO FICOU – O texto final estabeleceu que os nomes e contatos dos responsáveis pelo atendimento das ordens serão disponibilizados em página na internet, sem exclusividade a membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Judiciária. A expressão “incluindo dados para contato pessoal em finais de semana e em qualquer horário do dia ou da noite” foi suprimida. Para a aplicação da multa, o juiz deverá levar em conta também a relevância do caso. E os valores serão revertidos ao Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos. Os deputados mantiveram que a aplicação da multa não afasta a responsabilidade penal relativa ao crime de desobediência, mas retiraram do texto o trecho que previa de um a quatro anos de reclusão.

Artigo 63

  • 4º No prazo máximo de 2 (dois) anos da vigência desta lei, serão afixadas placas visíveis em rodovias federais e estaduais, no mínimo a cada 50 (cinquenta) quilômetros e nos dois sentidos da via, as quais indicarão, pelo menos, o número telefônico, o sítio eletrônico e a caixa de mensagens eletrônica por meio dos quais poderá ser reportada corrupção de policiais rodoviários ao Ministério Público.

COMO FICOU – Foi suprimido.


Artigo 64

  • 7º O Ministério da Educação, em conjunto com a Controladoria-Geral da União, desenvolverá medidas e programas de incentivo, em escolas e universidades, voltados ao estudo e à pesquisa do fenômeno da corrupção, à conscientização dos danos provocados pela corrupção e à propagação de comportamentos éticos.

COMO FICOU –  Foi suprimido.

ENTREVISTA 2 – MPF fez chantagem com o Congresso

O Extra Classe também entrevistou o advogado Norberto Flach, professor de hermenêutica jurídica e ética profissional da Fundação Escola Superior do Ministério Público.

EXTRA CLASSE – O senhor acredita que o Congresso desconfigurou o  Pacote Anticorrupção?
Norberto Flach – 
Há aí duas questões que estão juntas e por vezes se cruzam. Primeiro há a questão política: o Ministério Público Federal (MPF), especialmente ele, aproveitou um ambiente justo de indignação com a ‘roubalheira’, o momento político atual, para empurrar no Congresso um pacotão que é muito mais abrangente. Não são 10 medidas, é mais de uma centena. E o MP foi pouco habilidoso, porque pretendeu fazer uma espécie de ‘venda casada’: ou é tudo ou é nada. Fez até uma espécie de chantagem, ao insistir que quem era contra o pacote da forma como ele estava, era a favor da corrupção. Isto é uma infantilidade política, uma simplificação grosseira. O que aconteceu? Eu faço uma comparação: eles foram buscar lã e saíram tosquiados. É a ovelhinha da manhã versus o lobo da madrugada. Erraram porque não é o chão deles. Foi algo prepotente e arrogante. Na política não se pode ser assim. Já no mérito jurídico sou contrário a 80% das medidas propostas pelo MPF. Acredito que algumas são inconstitucionais. E avalio que o Supremo Tribunal Federal (STF), caso esse projeto venha a ser aprovado pelo Senado, vai receber uma enxurrada de impugnações sobre a constitucionalidade.

EC – O senhor concorda com a punição a magistrados e membros do MP por abuso de autoridade?
Flach – 
A emenda que foi incluída para ampliar as hipóteses de abuso de autoridade é bem razoável. Porque existem coisas inacreditáveis que hoje acontecem no Brasil. Por exemplo: ministro do Supremo antecipar voto, antecipar julgamento pela imprensa. Tem Tribunal de Justiça transmitindo júri pelo twitter, como se fosse jogo de futebol. Estão gritando que é uma mordaça: avalio que é uma mordaça bem posta. Tanto magistrados como membros do MP devem aparecer menos. Estes shows de som e luz que o Ministério Público Federal de Curitiba faz de vez em quando são absolutamente descabidos.

EC – Um dos pontos mais conhecidos, e polêmicos, foi a instituição da figura do ‘Reportante do Bem’. No substitutivo aprovado na Comissão que analisou o projeto inicial na Câmara esta figura passou a integrar um extenso Programa de Proteção e Incentivo a Relatos de Informações, que acabou inteiramente suprimido do texto final. Como o senhor avalia a supressão?
Flach – O que estava previsto era algo macartista. Os precedentes históricos que temos disto são o macartismo norte-americano, aquela cultura do ‘dedurismo’ dos nazistas, e o stalinismo soviético. Era uma caça às bruxas. Aquela coisa de estabelecer o clima de terror. E aí fica todo mundo tão aterrorizado que dedura o vizinho, sendo o vizinho culpado ou não.

EC – Há um empoderamento crescente do MP e do Judiciário?
Flach – A imprensa tem uma parte da responsabilidade nisto porque leva o Ministério Público e os magistrados, mas especialmente o MP, muito livres. Eu não sei se é um temor reverencial… Além do que o MP joga muito bem com a questão da informação e acaba conseguindo fazer publicar exatamente o que deseja. Por fim, está muito fácil queimar político. Não estou de modo algum passando a mão na cabeça dos políticos, porque de fato as coisas estão demais. Só que o MPF está querendo utilizar este clima como escada para instaurar um regime de restrição a direitos e liberdades individuais que não é democrático.

EC –  Desde que a Lava Jato começou, são feitas comparações com a Itália. É possível fazer comparações com o sistema Judiciário ou o Ministério Público em outros países?
Flach – Há de tudo um pouco. Por exemplo: nos Estados Unidos, o Ministério Público faz e acontece, mas os juízes são muito equilibrados. Então o MP norte-americano é tipo este nosso atual, midiático, até porque lá as vezes ele é eleito, dependendo do Estado. É algo bem midiático e populista. E os juízes são mais frios e tranquilos. Mas não há país no mundo que possua um Ministério Público tão poderoso quanto no Brasil. E estou falando da situação atual. Não existe no mundo um MP com tantas atribuições e tantos poderes como no Brasil. Afirmo isso com toda a tranquilidade. Italianos, franceses e alemães que vem para cá nos dizem: vocês criaram um super poder aí, e isto é para o bem e para o mal.

EC – Como o senhor projeta as movimentações sobre o Pacote daqui para a frente?
Flach – Isso ainda vai longe. Agora há um debate no Senado, que é um pouquinho mais controlado, mais discreto e mais técnico. Haverá uma guerra midiática pela frente. O lobby institucional está muito forte. Este projeto acaba saindo, talvez com uma ou outra restrição, e muitos pontos acabarão sendo impugnados pelo STF. Muitos pontos. A discussão será longa, e o Supremo vai demorar, pode realizar audiência pública, porque envolve controle de constitucionalidade.

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