“Pós-verdade” (post-truth), segundo o Dicionário Oxford, é “relativo ou referente
a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião
pública do que as emoções e as crenças pessoais”. Como se pode explicar o
conceito de pós-verdade para estudantes em sala de aula? E entender os riscos –
se é que existem – de se viver num mundo de pós-verdades?
Frame do filme 1984, realizado em 1956
Frame do filme 1984, realizado em 1956
Ao final, a garota resumiu:Foi durante uma aula sobre diversidade e como derrubar muros simbólicos e reais que segregam pessoas de credos, raças, cores, sexos e nacionalidades diferentes que surgiu pela primeira vez o termo “pós-verdade” para uma jovem do ensino médio em uma escola de Porto Alegre. A turma havia acabado de refletir sobre frases do livro Como conversar com um fascista, da professora de Filosofia Marcia Tiburi. Havia descoberto que Big Brother não é apenas um show de televisão que a TV Globo transmite, mas uma referência ao “Grande Irmão” do livro 1984 de George Orwell, e uma crítica aos estados totalitários. Os estudantes analisaram comerciais, notícias, novelas e programas de entretenimento.
– Eu ouvi na aula de História que na Alemanha uma vez teve um homem que mandou matar um monte de gente…
O homem era Adolf Hitler. Ela falava do Holocausto. E estava certa: talvez esse seja um dos capítulos da história da humanidade que explica mais profundamente as consequências da “pós-verdade”, eleita pelo Dicionário Oxford a palavra do ano em 2016.
Foi Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha nazista do ditador Hitler, quem tornou célebre a frase: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Essa é também uma forma de explicar o conceito de “pós-verdade”, que surgiu no bate-papo na escola durante uma oficina de leitura crítica da mídia, porque a expressão circula nos meios de comunicação junto com “fatos alternativos”. Numa das vezes, a expressão foi usada pela assessora do presidente eleito dos Estados Unidos Donald Trump para explicar as divergências de números sobre a quantidade de pessoas na posse de Trump, que era uma distorção.
Esta declaração foi talvez a menos danosa das pós-verdades diante de outras lançadas pelo presidente norte-americano, como a de que seu antecessor, Barack Obama, foi um dos fundadores do grupo terrorista Estado Islâmico. O Dicionário Oxford também salientou como pós-verdade o referendo que decidiu pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia, o Brexit, e explicou que tanto na campanha de Trump, como na do Brexit, foram divulgadas mentiras. Sobre o Brexit, era falsa a informação que a permanência na União Europeia custava à Grã-Bretanha US$ 470 milhões por semana.
No Brasil, há tempos circulam pós-verdades, como a de que a empresa de carnes Friboi é de propriedade do filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – difundida amplamente pela internet, e comprovadamente falsa. Mais recente, estão na mídia as pós-verdades de que acabar com os direitos trabalhistas e estender a idade para a aposentadoria são soluções para a crise econômica, política e social no Brasil, ambas desmentidas por especialistas.
Há um componente histórico, necessário e real ao se questionar verdades absolutas. O filósofo francês Michel Foucault dizia que a verdade está sempre em disputa, explica a cientista política Céli Pinto, titular do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Verdade absoluta só existe em sistemas totalitários”, afirma Céli. Mesmo o que se concebe atualmente como verdade, inclusive nas Ciências, pode ser que, daqui a uns anos, esteja ultrapassado.
Portanto, a construção do pensamento, e a interpretação do mundo e da vida é sempre um campo de disputa entre setores que compõem as diferentes sociedades. “Na Modernidade, os iluministas, e antes deles, no Renascimento, as verdades absolutas começaram a ser questionadas e a Ciência foi um componente decisivo. Nos séculos 18 e 19 a humanidade percebeu que o conhecimento é construído não só pela dúvida, mas pela necessidade de comprovação da dúvida e das respostas que a Ciência pode oferecer”, acrescenta o professor Solon Viola, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Com a Teoria da Relatividade de Albert Einstein, os estudos de Sigmund Freud sobre a psique humana e o discurso do pós-modernismo, as relativizações ganharam ainda mais força.
Mas, contra fatos, não há argumentos. É fato que se nasce e que se morre. É fato que nas manifestações de 2013 as forças de repressão agiram contra manifestantes. O perigo é relativizar tudo, inclusive o que nunca foi e nem nunca será um fato real, objetivo, comprovável. Pois se, na pós-verdade tudo depende do entendimento de cada um, o resultado é que a opinião e a crença passam a valer mais que o fato objetivo, mexendo com o imaginário das pessoas, conclui o jornalista Juremir Machado da Silva. Essa situação é ainda mais preocupante quando aparece no Poder Judiciário, diz Juremir, dando brecha para a interferência de interesses econômicos e políticos na decisão da Justiça.
Para Céli Pinto, os riscos são inerentes às pós-verdades: “Temos que refletir sobre a educação e a política, discutir e fazer uma profunda análise sobre as desigualdades existentes no país. Dentre as precarizações, a mais prejudicial é a desqualificação da política. ‘Todos os políticos não prestam’ é a pós-verdade mais dramática que o Brasil vive. Não há sociedade organizada que não seja politizada. A política é o enfrentamento de posições e de projetos. Precisamos de mais política, de projetos, de partidos reais, e envolver a população nesta discussão”, defende Céli.
Na mídia, o poder de manipulação e notícias falsas
Foto: Igor Sperotto
São nos espaços de “autoridade de fala” que as pós-verdades proliferam, observa a cientista política Céli Pinto. Assim, “por mais prosaica que seja a figura de Donald Trump, ele tem um espaço de fala importante, seja verdade ou não o que diz, porque é o homem que tem o maior arsenal atômico ao alcance de sua mão”, avalia. Em países onde os meios de comunicação estão concentrados nas mãos de poucos, aqueles que têm audiência adquirem um espaço de autoridade de fala.
“A vacina contra isso é checar as fontes, ver de onde sai a informação”, afirma o cientista político Benedito Tadeu César, que salienta a urgência de se buscar meios alternativos de comunicação. “Quando os fatos deixam de ser referência e é a versão que conta, a possibilidade de haver manipulação é muito grande”, adverte. César acrescenta que a esperança de democratização da informação pela internet trouxe também as “bolhas”: algoritmos do Google e do Facebook definem que notícias e produtos chegam aos usuários das redes sociais. As empresas de mídias tradicionais e políticos que vinham perdendo espaço nos meios impressos se deram conta disso, e ampliaram sua participação nas redes sociais para manter o espaço de controle.
O jornalista Juremir Machado da Silva lembra que os meios de comunicação tradicionalmente atendem os interesses das elites. No livro Raízes do Conservadorismo Brasileiro – a abolição na imprensa e no imaginário social que vai lançar até julho de 2017, Juremir descreve como o jornal A Província de São Paulo, que mais tarde viria a se tornar O Estado de S.Paulo, nasceu em 1875 com ideais republicanos e escravistas, publicando inclusive anúncios de venda de escravos. No entanto, hoje no site do Estadão consta que o periódico nasceu para combater a escravidão. “A mídia não só manipula, como reescreve a História dependendo de seus interesses”, constata.
Foto: Igor Sperotto
Professor do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Pucrs, Juremir se depara com estudantes que acreditam que a mídia “pode tudo”. Não pode tudo, mas tem uma influência grande, responde Juremir. A menos de um ano do impeachment que tirou do governo a presidenta Dilma Rousseff, muitos livros registram com detalhes como os meios de comunicação ajudaram a consolidar o golpe fomentando “pós-verdades”, salienta a professora aposentada e jornalista Christa Berger. Aos novos jornalistas, Christa recomenda retomar os princípios básicos de averiguar antes, ser ético, investir na narrativa. Às escolas, sugere incluir disciplinas de leitura crítica da mídia para incentivar a pensar e a se proteger de informações deturpadas que corrompem com as verdades.
Aulas com interatividade para estimular o pensamento crítico
Na década de 1980, as aulas de História do professor Solon Eduardo Annes Viola, no Colégio Israelita Brasileiro, tinham um diferencial. Os fatos eram explicados em seu contexto, com implicações geopolíticas, econômicas, sociais. Em 2017, como professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos, Solon Viola adiciona a suas aulas uma ferramenta: as lições são acompanhadas em tempo real pela internet, inclusive através dos smartphones dos estudantes. “Eles buscam na hora os conceitos que você anuncia. Isto possibilita também discutir a qualidade dos sites – peço que busquem em mais de um, e procuro sugerir os acadêmicos”, explica Viola.
Foto: Igor Sperotto
Incorporar a informação disponível no mundo digital é uma estratégia para aproveitar o recurso e para mostrar aos educandos que há outros caminhos para chegar a fontes teóricas e analisar fatos considerados “insubstituíveis”. E já que esta reportagem começou falando sobre nazismo, Viola conta: “Há seis meses, em um curso de Direito, um aluno questionou a veracidade dos crimes cometidos pela Alemanha nazista”. Neste caso, a internet teve um auxílio enorme. Bastou abrir o site e escrever Auschwitz (nome de um campo de concentração onde morreram milhares de pessoas durante o período nazista). Ali é também possível pesquisar sobre os efeitos da bomba de Hiroshima e de Nagasaki, ou sobre as ditaduras na América Latina, em sons e imagens. “Precisamos saber usar os instrumentos e saber questionar tanto os termos clássicos da Ciência como os novos termos que surgem, para entender sua relevância e origem”, observa.
Para a cientista política Céli Pinto, em tempos de “pós-verdades” o melhor que os professores podem fazer é abrir cada vez mais espaço para a voz dos outros/as. “Não adianta eu chegar em uma aula e dizer ‘isso é mentira’, porque não é assim que a gente desconstrói as verdades que as pessoas trazem de casa, ou da televisão”, diz. “Só tendo voz elas conseguem refletir, raciocinar, ouvir e mudar. Quando negros/as, mulheres, gays, lésbicas, pessoas trans e pessoas com deficiência começaram a se organizar e se fazerem ouvidos, suas vidas começaram a mudar”.
As músicas também podem ser usadas para contar essas histórias, denunciar, ir além das doutrinações, diz o compositor Raul Ellwanger. O músico é coordenador do Comitê Carlos de Ré, coletivo criado para lutar pela restituição da verdade e da justiça, para não deixar cair no esquecimento e impunidade as violências praticadas durante o regime militar do Brasil. “O Comitê sente na jugular o problema da pós-verdade”, reflete Ellwanger. Especialmente quando se ouve falar em “ditabranda”.
Ameaças verdadeiras na era das mentiras
Foto: Gisele Ortolan/ALRS
O risco de ignorar a História e é ela se repetir. Esta reportagem é também um alerta. Recentemente, o nome do ativista gaúcho Jair Krischke, fundador e coordenador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos e figura importante no desmantelamento da Operação Condor que uniu as ditaduras dos países do Cone Sul nos anos 1970, apareceu na lista de 12 pessoas ameaçadas de morte divulgada em fevereiro de 2017 pelo chamado Comando Barneix, formado por militares uruguaios interessados em se livrar das investigações que os ligam a torturas e assassinatos durante a ditadura. A Comissão de Direitos Humanos da OEA e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados foram acionadas para tomar providências.
Dicas de livros
- Informar não é comunicar – Dominique Wolton (Sulina, 2010)
- A Linguagem do Terceiro Reich (LTI) – Victor Klemperer (Contraponto, 2009)
- Testemunhos de uma Barbárie: uma perspectiva da injustiça a partir das vítimas do estado de exceção, Brasil 1964-1988 – Organizadores: Castor M. M. Bartolomé Ruiz e Solon Eduardo Annes Viola (Casa Leiria, 2016). Disponível em PDF, clique aqui.