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Sacudido pela crise política e econômica, o Brasil assiste a um fenômeno que muitos acreditaram que iria estancar a partir dos resultados da Lava Jato, do fim das doações empresariais em campanhas eleitorais e da enxurrada de denúncias de corrupção. Trata-se do afastamento entre as expectativas da sociedade e os poderes instituídos. Com isso, cai a identificação entre cidadãos e os escolhidos para os representarem no sistema político. É como se a classe política vivesse em outro planeta regido por leis próprias a partir dos seus interesses diretos, enquanto a população assiste atônita diante de enxurradas de informações sem ter a quem recorrer
Longe de arrefecer, este descolamento entre a classe política e o cidadão comum só cresce. E, nas últimas semanas, seus exemplos se multiplicaram. Apesar de todas as mudanças pelas quais passou na última década, o Brasil parece ter permanecido ‘no mesmo lugar’ quando o assunto é a relação entre o ‘povo’ e os que controlam as estruturas do poder. O exemplo mais evidente se materializou por meio de duas pesquisas de opinião, que mostram Michel Temer (PMDB) como recordista de impopularidade. A primeira, realizada pela Ipsos Public Affairs e divulgada em 25 de julho, apontou Temer como mais impopular que o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), que está preso, e que o senador Aécio Neves (PSDB), que caiu em desgraça desde que o empresário Joesley Batista detalhou como lhe pagou milhões em propinas. A sondagem, realizada na primeira quinzena de julho, antes do aumento do PIS/Cofins sobre combustíveis, registrou que 94% dos entrevistados reprovam a atuação de Temer no governo.
A segunda pesquisa, encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) ao Ibope, foi divulgada dois dias depois, em 27 de julho, e mostrou Temer com a pior avaliação de um presidente da República desde o início da série histórica do levantamento, em 1986. Apenas 5% dos entrevistados avaliaram seu governo como bom ou ótimo. Antes, o resultado mais baixo cabia ao ex-presidente José Sarney, que entre junho e julho de 1989 obteve 7% de bom e ótimo na sondagem. Em seus piores momentos, em junho e dezembro de 2015, a presidente afastada, Dilma Rousseff (PT), registrou 9% de bom e ótimo na pesquisa. Na sondagem atual, o Ibope também solicitou que os entrevistados comparassem as administrações Dilma e Temer: 52% deles consideraram a gestão da petista melhor. Entre os entrevistados, só 10% disseram confiar em Temer e 83% desaprovam sua maneira de governar.
Pesquisas comprovam distanciamento
As pesquisas traduzem uma já extensa lista de fatos que atestam a distância entre as instâncias de poder – com destaque ao governo Temer, seguido de perto pelo Congresso – e a população. Em determinados momentos, a distância beira ao deboche. Como no mesmo dia 27 de julho, data da divulgação da pesquisa do Ibope. Alheio à avaliação da população, Temer, em cerimônia no Palácio do Planalto para anunciar a implementação do Programa de Concessão dos Aeroportos, fez piada, dizendo que estavam faltando palmas. “Aliás, estavam faltando palmas, viu. Eu disse ao Moreira (Moreira Franco, titular da Secretaria Geral da presidência) e ao Padilha (Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil) que na próxima vez vamos trazer um puxador de palmas. Alguém bate palmas e os outros batem”, considerou, após pedir palmas para os ministros. Na sequência, o peemedebista emendou: “Aqui as palmas, eu sempre digo, vieram do coração, do reconhecimento”.
Foto: Marcos Corrêa/PR
A referência ao gesto, que originalmente expressa aprovação e celebração, mas do qual políticos com frequência lançam mão em solenidades e eventos utilizando-se de uma claque previamente orientada, não é exatamente uma novidade nas falas de Temer. No dia 13 de julho, durante a cerimônia recheada de ministros na qual sancionou a reforma trabalhista, o peemedebista disse que o país vive uma “suposta crise” e destacou que, ao longo das últimas semanas, ouvia “palmas que vem do coração”. Não parou por aí. Assegurou que seus 14 meses à frente da presidência estão “com toda a modéstia de lado, revolucionando o país”. Mas cometeu duas gafes, com margem a amplas interpretações. Primeiro, quando disse que o projeto da reforma trabalhista “é a revelação de como o governo age.” Na sequência, quando citou a Constituição: “Nós aqui estamos preservando todos os direitos dos trabalhadores. Não é que queiramos preservar. É que a Constituição Federal assim o determina”.
Índice de corrupção sobe e economia afunda
“Ao mesmo tempo em que o governo se vê envolvido em graves denúncias de corrupção, maiores inclusive do que as denúncias que propiciaram o julgamento da presidente Rousseff em 2016, os indicadores econômicos do país ainda não convencem sobre a superação da crise. E os indicadores sociais já começam a dar os primeiros indícios de que o recorte de recursos para a área social, assim como a extinção ou redução de programas de promoção de renda e direitos para setores mais empobrecidos do país, estão ampliando a desigualdade e a concentração de renda”, resume o professor Alfredo Gugliano, do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Ufrgs, e pesquisador dos temas que tratam de participação política e de teorias da democracia.
A ‘revolução’ posta em curso por Temer tem vários outros resultados para mostrar além da polêmica reforma trabalhista na qual a mudança mais visível é a prevalência do acordado sobre o legislado, mas apontada por juristas como repleta de armadilhas do ponto de vista da garantia de manutenção de direitos. Quando o assunto é trabalho, recordes nas taxas de desemprego, com um contingente que oscila em torno de 13,5 milhões de desempregados, conforme os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e estagnação nos rendimentos reais. O governo, contudo, vê de outra forma. Na sexta-feira, 28 de julho, comemorou o recuo de 0,7 ponto percentual na taxa de desocupação apurada no segundo trimestre deste ano, na comparação com o primeiro, dando destaque ao fato de que esta é a “primeira queda estatística significativa desde dezembro de 2014”. O fato de que a taxa de desocupação ficou 1,7 ponto percentual acima na comparação com a registrada no mesmo trimestre do ano passado ficou em segundo plano. Assim como o dado de que o número de empregados no setor privado com carteira de trabalho assinada (exceto os trabalhadores domésticos) continuou em 33,3 milhões, igual ao do trimestre anterior, o que significa 1,1 milhão a menos do que no mesmo período de 2016. Além disso, o número de empregados sem carteira de trabalho assinada subiu 4,3% no trimestre (mais 442 mil pessoas) e 5,4% (mais 540 mil pessoas) na comparação com o trimestre abril/maio/junho de 2016, totalizando agora 10,6 milhões de pessoas.
Alta de impostos, ministro milionário e tomate mais caro
Foto: José Gomercindo/ANPr
Se o assunto é a crise econômica e o custo de vida, de novo população e governo possuem percepções diferentes. Também divulgado pelo IBGE, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação oficial do país, fechou o mês de junho com uma deflação de 0,23%, o primeiro índice negativo em 11 anos. Com isso, o primeiro semestre de 2016 fechou em 1,18%, ante 4,42% registrados no mesmo período do ano passado. A queda foi comemorada pela equipe do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, apontado por setores empresariais como o ‘fiador da estabilidade’. Mas que teve a imagem arranhada após o site de notícias BuzzFeed divulgar, também em 27 de julho, que ele recebeu R$ 217 milhões por serviços de consultoria no ano passado, sendo a maior parte recebida por meio de contas fora do país, e R$ 50 milhões pagos em setembro, após ele já estar à frente da Fazenda. O ministro se defendeu dizendo que os pagamentos foram feitos fora do país porque seus contratantes eram empresas globais e os valores se referem a serviços prestados nos últimos anos, mas só pagos posteriormente.
Enquanto isso, nos supermercados, consumidores dos quais são cobrados até R$ 8,00 por um singelo quilo de tomate não conseguem calcular qualquer deflação. São os mesmos que, no dia 21 de julho, observaram incrédulos o governo anunciar um aumento dos impostos sobre os combustíveis, mais do que dobrando a alíquota do PIS/Cofins sobre a gasolina, que passou de 0,3816 centavos por litro para 0,7925 centavos por litro, resultando, conforme as projeções do próprio governo, em uma alta de 7% para quem vai abastecer. E que se tornaram impacientes depois de ouvir nos últimos 14 meses uma espécie de mantra dos defensores do impeachment de Dilma, de que o país terá crescimento econômico, mas que, na prática, até agora, não aconteceu.
Além do aumento dos impostos sobre combustíveis, o governo anunciou ainda um contingenciamento extra ‘temporário’ de R$ 5,9 bilhões no Orçamento, que já estava contingenciado em R$ 39 bilhões. E, por Medida Provisória (MP), criou um programa de demissão voluntária (PDV) para servidores da administração pública federal, autarquias e fundações. A MP, que somente se tornará uma lei efetiva se o Congresso aprová-la em até 120 dias, institui ainda jornada de trabalho reduzida com remuneração proporcional e licença sem remuneração com pagamento de incentivo em pecúnia. Segundo a equipe econômica, todas as medidas visam assegurar o cumprimento da meta fiscal, de déficit primário de R$ 139 bilhões, ou 2,1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2017. As estimativas do Ministério do Planejamento dão conta de que com o PDV o governo desligue 5 mil servidores e corte R$ 1 bilhão ao ano na folha de pagamento. Com o aumento dos impostos sobre combustíveis a projeção é de um crescimento de R$ 10,5 bilhões na arrecadação.
A confusão dos números e a desinformação
Foto: Lula Marques/Agência PT
De novo, os números confundem a população. Porque, apesar da crise nas finanças e da justificativa de que é preciso fazer a toque de caixa uma reforma da Previdência para não estourar os gastos públicos, o governo está tocando desde junho um novo Refis, o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert) para pessoas físicas e jurídicas no qual, além do parcelamento de débitos, há descontos em multas e juros que aliviam os valores devidos. É a segunda Medida Provisória (MP) encaminhada pelo governo ao Congresso para tratar do tema. A primeira foi tão modificada pelos parlamentares que o Executivo deixou que seu prazo vencesse e, após anunciar um acordo de Meirelles com o Legislativo, enviou o segundo texto. Mas, mais uma vez, a comissão que analisa a medida aumentou as vantagens para as empresas que decidirem aderir.
O governo já divulgou três diferentes expectativas de arrecadação com o Pert em 2017: R$ 13 bilhões, R$ 10 bilhões e R$ 8 bilhões. A renúncia fiscal, contudo, é muito superior a isso: de acordo com os cálculos da equipe econômica, R$ 63 bilhões caso seja mantido o texto original, que podem chegar a R$ 250 bilhões, caso incorporadas as mudanças feitas pelo Congresso até agora. Meirelles, por sua vez, chegou a afirmar que o novo perdão não deve gerar perdas fiscais em 2017 e as projetou para 2019.
Não será a primeira polêmica do ano no tema perdas e perdões do governo em tributos devidos por empresas. Em abril, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que ganhou visibilidade com a Operação Zelotes, deu ganho de causa ao Itaú no processo no qual é discutida se a fusão do banco com o Unibanco gerou ganho de capital. Com isso, o banco foi liberado, pelo menos por enquanto, do pagamento de R$ 25 bilhões em Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL). A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) decidiu recorrer à Câmara Superior do Carf.
Congresso vive num mundo à parte e cria leis sob medida
Fotos: Lula Marques / Agência PT (alto) e Antônio Augusto/ Câmara dos Deputados (embaixo)
Já as decisões do Congresso em aumentar os gastos públicos, na contramão do que o Executivo gosta de anunciar, estão longe de se resumirem ao Refis. Conforme dados disponibilizados pela ONG Contas Abertas, nos primeiros 17 dias de julho o Palácio do Planalto liberou R$ 2,1 bilhões em emendas parlamentares. O valor equivale a metade do que foi destinado a deputados e senadores desde janeiro deste ano. Os deputados não negam que a generosidade de Temer aumentou significativamente no período que antecedeu a votação no plenário da Câmara dos Deputados da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra ele por corrupção passiva.
Reportagem publicada pelo jornal O Globo em 16 de julho trouxe o levantamento de que o mesmo governo federal que acusa a necessidade de arrocho nas contas liberou quase R$ 15,5 bilhões em programas e emendas a estados e municípios nas duas semanas que antecederam a votação do relatório que recomendava a aceitação da denúncia da PGR contra Temer na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Em 12 de julho, o Planalto anunciou R$ 11,7 bilhões para obras e concessões de infraestrutura em estados e municípios. No dia 13 de julho, o Ministério da Saúde anunciou R$ 1,7 milhão para melhorias na rede de atenção básica. Os cerca de R$ 2 bilhões restantes saíram via emendas parlamentares. A CCJ rejeitou o relatório original, do deputado Sergio Zveiter (PMDB/RJ), que recomendava a aceitação da denúncia, e aprovou um relatório substituto, do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB/MG), pela rejeição.
“A população não está conseguindo se organizar em canais que transformem suas vontades em políticas públicas. Então, o governo age exclusivamente em prol da própria sobrevivência, apoiado por uma minoria empresarial que quer as reformas, independente da popularidade de Temer”, resume a coordenadora do Programa de Estudos Sobre a Esfera Pública da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape), da Fundação Getulio Vargas, Sônia Fleury. Ela destaca ainda que o aumento ou diminuição do descolamento entre as expectativas da sociedade e as esferas de poder depende do teor de novas denúncias contra Temer e do surgimento ou não de alguma perspectiva que possa alinhar diferentes forças.
Quanto às instâncias de poder político, Fleury assinala que as pesquisas do final de julho já deixaram evidente tanto as tensões existentes entre aliados que representam o capital industrial e aqueles que representam o capital financeiro como mostraram aos parlamentares que desejam se reeleger em 2018 para onde ‘o vento sopra’. “A questão é que eles (congressistas) também já se movimentam no sentido de fazer passar uma reforma política na qual as principais mudanças visam garantir sua reeleição, apesar desta distância que seguem mantendo das aspirações da população”, projeta.