Caos institucional e insegurança jurídica
FOTO Agência Verde-Oliva CComSEx
Em meio a profusão de manchetes sobre a tensão que tomou conta do país, coube a um jornal norte-americano, o The Washington Post, sintetizar os acontecimentos do Brasil na semana que está chegando ao fim. Na noite de quinta-feira, 5 de abril, em sua edição online, o Post cravou na editoria de Mundo a manchete “Ordem de prisão de Lula mergulha o país no caos político antes da eleição presidencial.” A frase resumiu para leitores no exterior o tamanho da confusão que paira sobre uma população dividida, a cada dia mais intoxicada pelas redes sociais e com dificuldade para separar o que é debate político e o que é aplicação da lei.
“Estamos assistindo a um debate muito desigual, e ao qual o Supremo Tribunal Federal (STF) sucumbiu. As pessoas, em alguns momentos, se preocupam mais com seus desejos do que com seus direitos. Por isso, existem regras. Mas o ‘caso Lula’ é um exemplo flagrante de desejos se sobrepondo a direitos: uma parte da população está disposta a abrir mão de um direito seu para ver alguém de quem não gosta preso. É um preço muito caro. Então, não tenho a menor dúvida de que vivemos uma crise de segurança jurídica”, argumenta o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Fabio Tofic.
Tofic se refere não só à proporção que tomou a discussão sobre possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, mas à farta apresentação de dados e informações falsas para corroborar teses contra e a favor, à chamada fulanização do debate e aos sucessivos atos com ‘cheiro’ de manobra para fazer valer vontades de grupos específicos, sempre sob o argumento de garantir a democracia.
Na expectativa sobre o julgamento do habeas corpus no STF que tentava evitar a prisão de Lula, uma população cada vez mais intolerante assistiu às instituições que deveriam garantir o equilíbrio afundarem no debate ideológico, aumentando a insegurança institucional. Na terça-feira à noite, véspera do julgamento do habeas no Supremo, o comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, fez os ânimos se exaltarem ainda mais ao disparar dois tuites: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?” e, na sequência: “Asseguro à Nação que o Exército compartilha o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”
As manifestações, interpretadas como endereçadas diretamente ao STF, animaram os entusiastas de uma intervenção militar, ao mesmo tempo em que geraram uma enxurrada de críticas. Na tarde seguinte, em meio a discursos inflamados e votos ambíguos, o STF não conseguiu dar fim a um impasse que se estende desde 2016, quando, por um voto, decidiu permitir a prisão após condenação em segunda instância. Consolidou o que o ministro Luis Roberto Barroso, defensor da prisão após condenação em segunda instância, descreve como “mutação constitucional”, já que o Artigo 5º da Constituição estabelece que “ninguém será julgado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
O problema é que não cabe ao STF alterar a Constituição. Uma mudança deste porte só pode ocorrer via Parlamento. Por isso, a decisão provocou uma onda de manifestações de criminalistas em todo o país, resumida na pergunta: “Se o STF não precisa cumprir a regra constitucional, quem precisa?” Ao voto ardoroso de Barroso argumentando que a Justiça, via de regra, só alcança os pobres, quando precisa valer para todos, os criminalistas rebatem que o processo em curso no Brasil é o inverso: as distorções da justiça criminal, que antes alcançava com mais voracidade aos pobres, se estendeu a uma parte da classe política.
Os debates sobre a decisão do STF estavam longe de se esgotar quando, na tarde de quinta-feira, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) expediu despacho autorizando o juiz federal Sérgio Moro a determinar a prisão de Lula. A autorização ocorreu poucas horas após o presidente do TRF4, desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores, afirmar, em diferentes entrevistas, que os recursos restantes à defesa de Lula no Tribunal seriam julgados em 30 dias. Em tempo recorde – 20 minutos depois da autorização do Tribunal – Moro decretou a prisão, estabelecendo prazo para que Lula se apresentasse até às 17h desta sexta. Estava posto o que, reservadamente, juristas de diferentes orientações políticas vem denominando de “lambança institucional”.
“O que preocupa bastante, independente do lado, é que, na verdade, desde o impeachment, adentramos um campo no qual as regras não estão mais sendo observadas. Há um jogo de forças se fazendo valer acima dos procedimentos básicos da democracia. Isso nos leva a questionamentos muito objetivos: Vai ter eleição? Os resultados serão respeitados? Poderá alguém tirar um coelho da cartola e instaurar um regime parlamentarista?”, elenca o coordenador do Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia da PUCRS, André Salata.
Salata é cético em relação à crença de parte da população que, impulsionada pelas redes sociais, acredita que a prisão de Lula vai diminuir a corrupção no país e aumentar a justiça social. “Há uma mudança quando você observa uma pessoa com os recursos de Lula sendo presa. Mas, ainda assim, isso acontece porque é o Lula. Isso não significa que todos os que estão no topo serão afetados. E, certamente, este não será mesmo o marco de uma época em que a lei vai passar a valer para todos”, adverte.
ENTREVISTA
Fábio Tofic, presidente do Instituto de Direito ao Direito de Defesa (IDDD) falou com exclusividade ao Extra Classe.
Foto: YouTube/Divulgação
Extra Classe – O país vive uma crise de segurança jurídica?
Fabio Tofic – Não tenho a menor dúvida. O Supremo Tribunal Federal (STF) é o guardião da Constituição e, por consequência das leis. Ele é o fiador da segurança jurídica. Mas quando um Supremo Tribunal julga com base em dados e estatísticas, e não com base na Constituição, é porque a coisa vai mal. Dados e estatísticas são material a ser discutido na academia, e cuja análise demanda tempo e pode até ensejar a proposta de mudanças estruturais, mas nos âmbitos corretos. Estatísticas servem para alterar políticas, por exemplo. O que foi feito foi uma subversão da ordem jurídica para impor uma nova política criminal. E isso destitui o Legislativo, o que é muito grave. Em 2009 ficou decidido por ampla maioria que não haveria prisão após condenação em segunda instância. Sedimentado um tema tão importante em 2009, pela primeira vez desde a Constituição de 1988, e por ampla maioria, será que é razoável o STF a todo o tempo ficar revisitando esta questão? Em 2016 mudaram o entendimento por uma maioria muito apertada, de seis a cinco. E isso provoca um racha. Criou-se uma justiça lotérica. Hoje um réu que é preso em segunda instância e recorre ao Supremo tem 50% de chance de ser solto e 50% de ficar preso. Não tem uma regra. Não tem segurança jurídica. E aí o que ocorreu no julgamento do Lula? O órgão competente para julgar era a Segunda Turma do Supremo, composta por cinco ministros. Na Segunda Turma ele ganharia por quatro a um (o ministro Edson Fachin). Aí o Fachin manda o habeas para o Pleno. Justificaria mandar ao Pleno se a discussão do habeas extrapolasse a análise do caso individual. Mas no momento em que a ministra Rosa Weber deixa de conceder o habeas argumentando que era um caso individual, escancarou a ilegalidade de o caso ser julgado pelo Pleno.
EC – A isso se devem as críticas sobre manobras e manipulações?
Tofic – Um dos problemas é o regimento do Supremo, construído em uma época em que a Corte era mais harmônica. Ele permite algumas manobras. Por exemplo, que o caso do habeas do Lula, que é individual e subjetivo, fosse mandado para o Pleno com urgência, enquanto as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs), como a proposta pela OAB, que discute esta questão de forma ampla, objetiva e abstrata, ficasse engavetada porque a presidente tem o poder de não pautar. É uma inversão. O regimento permite que o ministro leve um habeas para o Pleno sem precisar dar grandes justificativas para isso. A forma como o Supremo se movimenta também é um exercício de poder. E é um exercício de um poder que está se tornando cada vez mais forte. Será que o regimento não deveria prever ordens de prioridade? Pelo menos saberíamos que houve um critério que não é o da conveniência, não é o político, e nem o do réu que está sendo julgado. Na verdade em 2016 mudaram por causa da Lava Jato. Não pode. Isso é exceção.
EC – Houve uma celeridade atípica no caso Lula?
Tofic – O razoável é esperar o término de tudo. Mas é que a decisão do STF é tão absurda que impõe uma prisão automática no segundo grau. É surreal um Judiciário no qual os casos não precisam ser individualizados. Por que não posso dizer: no meu caso esta prisão é absurda porque eu tenho esta, esta e mais esta questão para discutir. No fundo, a divergência dos advogados é esta. Somos contra que a Justiça seja imposta automaticamente, para todo mundo, de forma idêntica, porque as pessoas não são idênticas. E as acusações e as provas também não, nem a forma como um réu se comporta no processo. Será que é justo tratar todos da mesma forma? Prendê-los.
EC – O ministro Luís Roberto Barroso relacionou seu voto ao longo prazo de tramitação de processos e citou exemplos de crimes que prescreveram. Na prática, qual é a relação entre prisão após condenação em segunda instância e morosidade do Judiciário?
Tofic – É claro que a demora decorre também da quantidade de recursos. Mas, é importante que se destaque: todos os juízes de um caso tem total condição de controlar os prazos de prescrição. Então, se um caso estiver para prescrever, é só colocar em julgamento que ele não prescreve. O Judiciário tem como controlar isso. E hoje em dia é muito incomum prescrição em casos graves. Há casos que acabam prescrevendo, mas por outros motivos. A estatística do Barroso, ele falou em mil casos, parece muito, mas não é muito mais que a porcentagem de pessoas que são inocentadas no Superior Tribunal de Justiça (STJ), ou seja, que começaram a cumprir pena injustamente. Porcentagem às vezes é algo perigoso. Ora, a gente está admitindo que tudo bem mandar mil pessoas para a cadeia por ano injustamente no Brasil. Quem são estas pessoas? Que lógica é esta? Não dá para trabalhar só com a lógica numérica. Outra falácia muito bem construída pelo ministro Barroso é de que pouca gente é absolvida no STJ e, então, não faria sentido ficar aguardando. Na verdade uma das questões mais importantes que o STJ julga em matéria penal é regime de cumprimento de pena e quantidade de pena aplicada. E, nesses casos, é muito grande a porcentagem de casos que o STJ reforma. É muito alta. Eu diria que talvez metade das questões penais levadas ao STJ são sobre pena e regime de pena. E isso ninguém fala.
EC – O caso Lula se enquadra nesta questão?
Tofic – O Lula está condenado no regime fechado a uma pena de 12 anos por corrupção e lavagem de dinheiro. Existe na lei a figura do crime continuado. Por exemplo: se eu deixar de pagar imposto por 12 meses em 2018, não vou responder por 12 sonegações. Isso elevaria muito a pena e, de repente, o valor nem foi alto. Então, a lei prevê que, quando você comete um crime de forma reiterada, não soma, e sim aplica uma pena por um deles e aumenta de um sexto até a metade. Isso não foi feito no caso do Lula. Digamos que o STJ ou até o STF conclua que a pena do Lula foi aplicada de forma equivocada. E essa pena caia para seis ou sete anos. Aí é regime semiaberto. Então é razoável que ele comece a cumprir pena no fechado e amanhã ou depois um tribunal conclua que deveria ter começado no aberto?