POLÍTICA

Bolsonaro no discurso, Temer na prática

Diferente do discurso de mudança que pautou eleição, Bolsonaro sinaliza continuidade da obra de Temer
Por Flavia Bemfica / Publicado em 8 de novembro de 2018

 

Foto: Alan Santos/PR

Foto: Alan Santos/PR

Para além do anúncio de informações divergentes usado como estratégia, os primeiros movimentos do governo a ser chefiado por Jair Bolsonaro (PSL) a partir de janeiro apontam para o prosseguimento da política econômica da administração Michel Temer. Quem acreditou no candidato antissistema apoiado por empresários e financistas que integram o sistema deve se frustrar. A tendência mostrada por Bolsonaro e seus superministros é a da adoção das chamadas soluções de continuidade na economia, com manutenção do teto de gastos, privatização de estatais, Reforma da Previdência, possibilidade de ampliação da Reforma Trabalhista e desconstrução de direitos sociais. A chance de que a legitimação das urnas ocasione a tentativa de aprofundar a adoção do Estado mínimo, com avanço do setor privado sobre a área da saúde, implementação do sistema de capitalização na Previdência e cobrança de mensalidades em universidades públicas é amplificada por declarações do próprio Bolsonaro e sua equipe. A ‘pressa’ em fazer logo a Reforma da Previdência marcou suas primeiras manifestações como presidente eleito e deu visibilidade a outra característica que deve marcar a futura administração: o tensionamento constante entre os grupos distintos que vão integrar o núcleo do governo

Até agora, não há qualquer demonstração da existência de um planejamento de implementação a curto prazo de medidas eficazes para geração de emprego e renda que aqueçam o mercado consumidor e façam a economia se recuperar de fato. Nesse item, o destaque foi justamente uma sinalização inversa. Em 30 de outubro, em uma de suas primeiras manifestações já como futuro ministro da Economia (união das pastas da Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio Exterior), o guru de Bolsonaro, o economista Paulo Guedes, criticou os representantes da indústria nacional, dizendo que defendem protecionismo, subsídio e desonerações setoriais que prejudicam o setor, falou em maior abertura comercial e disse que o próximo governo vai “salvar a indústria, apesar dos industriais”.

As declarações se dão em um momento em que o binômio redução de gastos/desconstrução de direitos adotado pelo governo Temer, e traduzido pela implementação de grandes alterações, como a Reforma Trabalhista, seguem evidenciando resultados pouco animadores. No mesmo dia 30 de outubro o IBGE divulgou os últimos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Mensal. Os números mostraram que a população ocupada cresceu 1,5% (1,3 milhão de pessoas a mais) entre julho e setembro, na comparação com o trimestre anterior, fazendo a taxa de desocupação cair de 12,4% para 11,9% e o número absoluto de desocupados ficar em 12,5 milhões de pessoas. Mas a característica do aumento na ocupação preocupa  técnicos e especialistas. “O problema maior desse avanço é que se deu em emprego sem carteira e por conta própria. É um resultado favorável, mas voltado para informalidade e aumento da subocupação”, explicou o coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo, na coletiva de divulgação dos números. Os dados do trimestre mostraram ainda contingentes recordes de empregados no setor privado sem carteira assinada, de trabalhadores por conta própria e do número de pessoas que trabalham menos de 40 horas semanais, mas gostariam de trabalhar mais. Como é evidente, a característica das ocupações não gerou aumento na renda média. O rendimento médio real habitual ficou estável tanto na comparação com o trimestre anterior como com o mesmo período de 2017.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

 Mudar para deixar como está

“A crise social, política e econômica fez com que a maior parte dos eleitores votasse pela mudança. Só que esta mudança tem muitas soluções de continuidade das políticas implementadas a partir de 2015, o que tende a arrastar a crise econômica que vivemos. Além disso, o recuo da atuação do Estado pode gerar uma desigualdade muito forte. A manutenção da atual política econômica e de pessoas ligadas a ela, aliada à desconstrução de direitos sociais, vai frustrar uma parte significativa da base de apoio, inclusive a que foi comovida pelo discurso do ódio, aquela que acreditou ou acredita que a solução seria extirpar do sistema uma determinada visão de mundo. Ou seja, não há no horizonte indicação de que o próximo governo vai entregar uma sociedade melhor, menos corrupta, com menos violência, com mais segurança, mais direitos sociais e mais emprego e renda. O que há é a sensação de que, por uma série de fatores, o projeto anunciado dificilmente será cumprido”, elenca o diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor do Instituto de Economia, Pedro Rossi.

Rossi, em conjunto com Esther Dweck e Ana Luiza Matos de Oliveira, responde pela organização do livro Economia Para Poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil, lançado neste ano, e que articula o tema da gestão orçamentária com a agenda dos direitos sociais. No trabalho, diferentes análises e bases de dados demonstram que, no Brasil, o gasto público, em particular aquele com saúde, previdência e educação, tem um efeito distributivo muito grande, e que sua desconstrução vai aumentar ainda mais a desigualdade.

RECESSÃO – Antes que isso ocorra, o professor projeta um 2019 marcado pela escassez de recursos (será a gestão com a maior restrição fiscal da história) combinada com o enfrentamento a burocracias estatais e o embate entre duas visões antagônicas dentro do governo, que tendem a travar projetos mutuamente: a ala ‘neoliberal’ representada por Paulo Guedes, favorável às privatizações generalizadas e à “desconstrução de serviços públicos e direitos sociais”, e a ala militarista, um pouco mais nacionalista, e que tem como projeto o uso do Estado para determinadas finalidades, em particular um projeto de combate à criminalidade e valorização de carreiras vinculadas à justiça e segurança pública. “Há conflitos claros entre essas duas leituras. O projeto militarista demanda recursos públicos. A discussão da Previdência também vai custar um capital político grande a Bolsonaro. Particularmente, tenho sérias dúvidas sobre se os quadros apontados terão capacidade para gerir a máquina pública, a começar pelo próprio presidente”.

“Na economia será sem dúvida um governo de continuidade do atual, com chance de aprofundamento de medidas. A sintonia já pode inclusive ser observada na transição. Bolsonaro vai tentar implementar na economia o que Temer, por uma série de dificuldades, não conseguiu. Mas é fato que, dentro do campo no qual ele se situa, no que se refere à economia, haverá muita polêmica, uma série de dificuldades. São políticas impopulares”, completa o professor do Departamento de Ciência Política (DCP) da Universidade de São Paulo (USP) e colaborador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Glauco Peres da Silva.  Ele assinala que o governo terá mais facilidade em implementar a pauta moral, que inclui a discussão da revisão do estatuto do desarmamento e o projeto Escola sem Partido. “É mais afinada com o Legislativo. É uma agenda que o Temer não levou adiante porque talvez não seja a agenda dele, mas que, se tivesse tentado, conseguiria”, alerta Silva.

Populismo nas redes sociais

Depois do largo uso do WhatsApp na campanha eleitoral e seu impacto sobre os resultados, o governo eleito encabeçado por Jair Bolsonaro (PSL) deve seguir na linha copiada do presidente norte-americano Donald Trump e incrementada no Brasil. “Meu palpite é de que vai durante muito tempo continuar ou pelo menos tentar a mesma estratégia de lançar mão de um elemento populista, que é o contato direto com a população. Ou seja, vai seguir em campanha”, adverte o professor do Departamento de Ciência Política (DCP) da USP e colaborador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Glauco Peres da Silva.

Tão logo foi eleito, Bolsonaro intensificou os ataques e ameaças a veículos tradicionais de imprensa, segue se dirigindo com exclusividade ou de forma seletiva a empresas amigas, decidiu anunciar os ministros pelo Twitter e criou canais de informações ‘oficiais’ nas redes sociais. Na outra ponta, a estratégia inclui a divulgação sucessiva de informações contraditórias nos contatos com os veículos profissionais, que acabam publicadas em sequência pelos mesmos, gerando uma confusão de versões. O movimento serve para que Bolsonaro e seus articuladores argumentem que a mídia profissional “falta com a verdade” e, ao mesmo tempo, incentivem a população a buscar as notícias “corretas” somente em sites e páginas que eles mesmos recomendam.

Em seu canal oficial no Youtube, após eleito, Bolsonaro publicou uma lista de 29 “mídias alternativas de qualidade” para que seguidores se inscrevam, curtam e repassem. A chamada “Vamos quebrar as pernas da grande mídia”, em caixa alta e negrito, abre a publicação, na qual seu próprio canal é o primeiro listado. Após o rol, nova frase de efeito em caixa alta e negrito: “Brasil x Imprensa manipuladora esquerdista”.

“É um ‘case’ de estudo da estratégia de comunicação deturpada. Sabemos que as pessoas possuem o viés da desinformação, no sentido de que leem o que querem enxergar, ouvem o que querem escutar, são induzidas a reafirmar o que já acreditam, porque o cérebro age assim. Mas, neste nível que estamos observando, chega a ser assustador. Na atual situação será muito fácil criar, por exemplo, a partir de um governo Bolsonaro que seja ruim, a constatação de que a responsabilidade é da oposição no Congresso. Não podemos deixar de apontar como muito preocupante a tentativa de suprimir a crítica, de não tolerar a existência da oposição ou de não reconhecer a existência de um discurso antagônico”, adianta Silva.

“Está havendo uma inversão. O direito de uma imprensa livre, bem como o de livre assembleia, de reunião, de manifestação pacífica de estudantes e professores, são garantias consagradas na democracia e em nossa Constituição. E quem está no poder vai ter que se acostumar a conviver com a crítica e o divergente”, resume o diretor jurídico e financeiro da ONG Conectas Direitos Humanos, Marcos Fuchs.

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