Falsificações da história e histórias de resistência
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
O esvaziamento da Comissão de Anistia e o não cumprimento de recomendações da Comissão Nacional da Verdade são parte do processo para impedir a recuperação da memória, a reparação das vítimas de crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura no Brasil, e a punição dos agentes que cometeram esses crimes e que são frequentemente homenageados pelo atual governo. Nas universidades, nas escolas e nas ruas, há movimentos de resistência.
A Comissão de Anistia, criada em 2001 para a reparação e memória da ditadura no Brasil (1964-1985), começou a ser esvaziada após o início do governo Michel Temer, com o afastamento de conselheiros e conselheiras. Em 2019, a Comissão passou do Ministério da Justiça para o da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, cuja ministra, Damares Alves, tão logo assumiu o cargo, restringiu as indenizações de reparação de vítimas da ditadura, anulou algumas que já estavam previstas e nomeou militares contrários à anistia para substituir os integrantes da Comissão. O Ministério Público Federal entrou com uma ação com pedido de liminar questionando as mudanças. A liminar foi negada, mas a ação segue na Justiça.
As contradições são evidentes: o novo presidente da Comissão de Anistia é o advogado João Henrique Nascimento de Freitas. Foi ele quem entrou em 2015 com uma ação para suspender a indenização a familiares de Carlos Lamarca, um dos líderes da resistência à ditadura, morto pelo Exército em 1971. Freitas é ainda responsável pela ação que conseguiu, à época, suspender a indenização já concedida a 44 camponeses vítimas de tortura durante a Guerrilha do Araguaia. Outro integrante da Comissão é o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva, que fez elogioso prefácio de um livro de Carlos Brilhante Ustra, apontado como torturador durante a ditadura.
O governo atual também cortou verbas federais da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos – o trabalho segue por enquanto, mas com dificuldades. E não estão sendo cumpridas as recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Instituída pela Lei 12.528/2011 para ser temporária, a CNV abriu uma porta para a investigação sobre violações de direitos humanos entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Ao encerrar suas atividades em 2014, deixou lacunas e 29 recomendações. Entre elas, a criação de um órgão federal para prosseguir com as apurações – o que não aconteceu. “Certamente, o relatório da Comissão da Verdade desagradou os militares”, observa a advogada criminalista Rosa Maria Cardoso da Cunha, que coordenou a CNV e presidiu a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. Esse fato ajuda a entender a situação política atual. “As primeiras recomendações são de responsabilização civil, administrativa e penal de militares envolvidos em crimes de tortura, sequestro, desaparecimento forçado, ocultação de cadáver, assassinatos”, recorda.
O professor da Escola de Direito e do mestrado e doutorado em Ciências Criminais da PUCRS, José Carlos Moreira da Silva Filho, ex-conselheiro e vice-presidente da Comissão de Anistia, ressalta que no Brasil a anistia teve um caráter ambíguo da chamada Justiça de Transição. “Ao mesmo tempo que a anistia foi uma luta política pela redemocratização, o termo foi usado pelo governo para impedir que agentes institucionais que violaram direitos humanos fossem responsabilizados”, explica. Então, a palavra tem o sentido de memória, mas também é usada para o esquecimento – e esse é um discurso em disputa. “A própria proposta de reforma da Previdência que está no Congresso Nacional confunde a natureza indenizatória da reparação econômica por perseguição política no período estabelecido na lei com uma natureza previdenciária, e diz que os anistiados terão de escolher entre a indenização por reparação e a sua previdência”, constata.
Moreira lembra que o Estado brasileiro, o qual é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos duas vezes: por não ter investigado e punido os responsáveis pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog e pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas em operações do Exército, entre 1972 e 1975, contra a Guerrilha do Araguaia no contexto da ditadura. “Todos os projetos que a Comissão de Anistia tinha, de atendimento psicanalítico a vítimas de tortura, de memória, de apoiar iniciativas culturais, isso acabou. E o Memorial da Anistia Política foi interrompido, ao contrário do que as sentenças condenatórias diziam que o Brasil tinha que fazer.”
Da CNV ficaram sementes e uma lição. “A CNV emulou o surgimento de mais de 100 comissões no Brasil. Algumas continuam”, informa Rosa. Moreira enfatiza: “Depois que se conseguir recuperar minimamente as bases democráticas do país e a normalidade institucional, o futuro de uma possível democracia vai depender do que se vai fazer com o período que a gente está vivendo agora. Se não houver uma responsabilização, com ampla reforma administrativa para corrigir o que está se vendo agora, lá na frente vai acontecer de novo”.
Fioto: Igor Sperotto
Onda reacionária se fortaleceu depois da Comissão da Verdade
Responsável pela formação de centenas de professores de História ao longo de 34 anos de profissão, o professor de História Contemporânea da Ufrgs Enrique Serra Padrós testemunhou o ingresso de alunos e alunas cotistas, as políticas de inclusão, e o crescimento da consciência crítica com a discussão de temas como a ditadura, que foram repassados por esses profissionais nas escolas em que lecionam. Na primeira aula após o primeiro turno das eleições de 2018, viu o medo e a tristeza em alguns alunos, principalmente negros/as, gays, lésbicas, que vinham das periferias.
“Há um paradoxo. Nós, pesquisadores e professores, sempre defendemos a ideia de que era o desconhecimento sobre o passado da ditadura que permitia a continuidade de uma série de fatores visíveis e invisíveis que davam sentido a essa violência estatal nunca devidamente enfrentada. Só que, com a Comissão da Verdade em 2012, e em 2014, data da lembrança dos 50 anos do golpe de Estado, vimos o país ser tomado por eventos, e uma quantidade de pesquisas significativa sobre o período”, afirma Padrós. “Nunca falamos tanto sobre ditadura. Entretanto, dois anos depois, temos o fenômeno Bolsonaro.”
Portanto, o problema não é despolitização, acredita: “Esse termo se usava para identificar a falta de consciência política e conhecimento. Agora a política é feita a partir da mentira, em redes sociais, onde não se consegue filtrar a informação”.
Padrós reconhece que a ditadura não faz parte da história de jovens entre 16 e 30 anos que recém ingressaram nas universidades e avisa que as gerações atuais, fragilizadas pelo individualismo plantado pelo neoliberalismo que rompe com as lutas coletivas, terão de aprender que as derrotas políticas fazem parte dos processos democráticos, mesmo os que se sustentam pela desinformação. “É um aprendizado. Jovens vão perder direitos que nem sabiam que eram direitos, e vão se dar conta de que não surgiram do nada, são reivindicações históricas”, avalia. As participações nas manifestações de 2013, na ocupação das escolas em 2016, e nos protestos de 2019 são parte do aprendizado. “Muitos que não se posicionaram nas eleições vão ter de fazer isso agora”, resume.
Os voos do Condor na mira da Justiça
Foto: Igor Sperotto
A primeira condenação de brasileiros por participação na Operação Condor, que possibilitou a integração entre ditaduras da Argentina, do Brasil, do Uruguai, do Chile, do Paraguai e da Bolívia entare os anos 1970 e 1980, poderá acontecer na Itália. A Justiça italiana deverá anunciar em breve a data do julgamento sobre o envolvimento de João Osvaldo Leivas Job, ex-secretário de Segurança do Rio Grande do Sul; Carlos Alberto Ponzi, ex-chefe da agência do Serviço Nacional de Informações (SNI) em Porto Alegre; e Átila Rohrsetzer, ex-diretor da Divisão Central de Informações do Rio Grande do Sul, no sequestro e assassinato do ítalo-argentino Lorenzo Vinãs ocorrido em 1980, durante a Operação Condor.
Essa Operação foi uma rede de troca de informações, técnicas de tortura, com sequestros, prisão e desaparecimento de perseguidos políticos que buscaram refúgio em outros países. Uma das testemunhas no processo italiano é Jair Krischke, 80 anos, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, referência na luta por denunciar e punir os envolvidos na ditadura. Krischke teve papel importante na libertação dos uruguaios Lilián Celiberti e Universindo Díaz, que haviam sido sequestrados no contexto da ditadura uruguaia em Porto Alegre.
O nome de Krischke está incluído na lista de pessoas ameaçadas de morte no Uruguai por sua atuação na luta pelos direitos humanos. A lista foi organizada por um grupo de militares do chamado Comando Barneix – o nome se refere ao suicídio do general Pedro Barneix, que, acusado pela morte de pessoas na ditadura uruguaia, se matou antes de ser preso.
“Precisamos conhecer a Operação Condor”, diz Krischke, “porque não foi uma facção ou um partido que cometeu esses crimes, foi o Estado brasileiro”. Em sua busca por provas e pela História, ele encontrou documentos que comprovam como as primeiras ações foram planejadas dentro do Itamaraty e ajudam a compreender como se deu a participação dos brasileiros na Operação em outros países e os esquemas de espionagem dos serviços secretos dos países envolvidos e, inclusive, dos Estados Unidos.