Manuela D’Ávila: A imagem do Brasil hoje é de uma nova colônia
Foto: Igor Sperotto
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Figurando no primeiro lugar na disputa para a prefeitura de Porto Alegre nas eleições de 2020, de acordo com pesquisa do Instituto Methodus divulgada no início de outubro, Manuela D’ávila (PCdoB), ex-candidata à vice-presidência do Brasil na chapa de Fernando Haddad (PT) nas eleições de 2018, recebeu o Extra Classe para uma entrevista exclusiva. Falou das eleições municipais do próximo ano e de uma possível candidatura, comentou sobre sua decisão de permanecer no Brasil mesmo com as inúmeras ameaças de morte que recebe, abordou a relação com o jornalista Glenn Greenwald, das matérias divulgadas pelo site The Intercept e a descrença numa possível punição a Sérgio Moro, atual ministro da Justiça, e o procurador Deltan Dallagnol, que atuaram na operação Lava Jato. Numa análise mais abrangente, a ex-deputada falou sobre a conjuntura política brasileira e mundial, elogiando a experiência de alguns países e líderes que, a exemplo do ex-presidente Lula, a inspiram. Ao detalhar suas críticas ao governo de Jair Bolsonaro, ela afirma que temos na presidência do Brasil alguém que coloca o país na “posição de uma nova colônia resignada”, que este “é quase um governo colonial” e que Bolsonaro “parece um príncipe-regente”. Manuela falou ainda sobre a criação do Instituto E Se Fosse Você, do combate às fake news, do lançamento de seus dois livros, sobre feminismo e sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea.
Extra Classe – O termo comunista tem sido usado como adjetivo para ofender e atacar lideranças e militantes da esquerda. É também uma tentativa de convencer parte da população de que ser comunista ou ser de esquerda é uma condição que desqualifica o indivíduo para a política ou para a vida pública. Afinal, o que é ser comunista ou ser de esquerda no Brasil contemporâneo?
Manuela D’Ávila – Concretamente, ser de esquerda hoje no Brasil é resistir às destruições apresentadas pelo Bolsonaro e por seu governo e pensar em como construir alternativas de desenvolvimento, de superação da crise e de esperança. Hoje, para mim, a esquerda deve compreender que o seu papel é o da construção de uma frente democrática de resistência diante desse governo fascista. Então, ser de esquerda é resistir, apresentando alternativas de futuro, e o futuro passa pela ideia de esperança. O Duca (Leindecker, músico e marido de Manuela) tem uma música em que ele fala: “o futuro que virou presente acaba de passar.” Ou seja, a ideia de futuro é sempre muito breve. A gente planeja, e quando vê, já virou presente e já virou passado. E se a gente não conseguir apresentar uma perspectiva de futuro como esperança para o povo, a gente não estará à altura dos desafios do nosso tempo. Nosso campo político ainda não se apresentou como uma alternativa de futuro diante dessa crise tão cruel que a humanidade vive e que o Brasil também vive.
EC – Existe hoje alguma liderança política mundial que te inspire?
Manuela – O presidente Lula é um dos maiores líderes do mundo. Mas existem muitas novas lideranças surgindo. Não só indivíduos. Tem saídas interessantes ocorrendo no mundo. O que Portugal tem conseguido construir é uma referência interessante de maturidade de partidos e de movimentos políticos.
EC – Que outros países se tornaram referências de garantias de liberdades e de direitos de igualdade e poderiam servir de exemplo para o Brasil?
Manuela – Acho que cada país tem uma caminhada única. Uma das maiores lições da esquerda global, com a queda do muro de Berlim, é a ideia de que não existem modelos a serem seguidos. O que existe são experiências interessantes. Os nossos vizinhos uruguaios, para o seu povo e para o seu país, constroem uma experiência muito significativa. Uma experiência política com a Frente Ampla, quer dizer, um bloco político de partidos que superam diferenças e se revezam em posições na prefeitura de Montevidéu há quase três décadas no governo, devem ir para uma quinta ou sexta eleição. Os argentinos têm um processo de mobilização social que deve resultar na eleição do Alberto (Alberto Fernández, candidato de centro-esquerda à presidência do país) com a Cristina (Kirchner) de vice, que será muito interessante. A Bolívia constrói um processo com o Evo Morales, também próprio, com os cocaleiros, com um povo indígena interessantíssimo. O que Barcelona vive com a experiência Barcelona em Comum, com a Ada Colau, que é uma mulher jovem, que é mãe, como eu, e que construiu uma experiência diferente a partir do poder local. E também o que Bernie Sanders representa hoje nos Estados Unidos. Ele arrecadou 19 milhões de dólares para sua campanha eleitoral, a partir de um milhão de pessoas que doaram, em média, 19 dólares cada uma. Com uma campanha que é mais radical do que qualquer candidato apresentou no Brasil programaticamente. No coração do capitalismo atual, o Sanders representa uma proposta de enfrentamento radical à crise econômica do capital. Então, eu acho que hoje existem muitas experiências interessantes acontecendo “do lado de cá” e existe um gigante “do lado de lá” que é a China, que é uma experiência que os socialistas do mundo devem estudar. Eu sempre divido o “lado de cá” do “lado de lá” porque nós estamos no Ocidente. Se comparar o Brasil com o Uruguai já é difícil, imagina com a China. Mas o mundo deve estar atento para o que acontece com a China, um país que era paupérrimo, onde a população morria de fome e que em 30 anos a renda per capita dos trabalhadores dobrou, comparada com a do trabalhador brasileiro.
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Manuela – A situação é e sempre foi complexa, porque a Venezuela é a maior produtora de petróleo da nossa região, é o país que produz mais petróleo fisicamente mais perto dos Estados Unidos. Também é um país que tem uma fronteira por terra com o Brasil, na região Amazônica. Então, acho que é bom que os brasileiros fiquem atentos, que façam uma leitura sobre a política venezuelana com os óculos certos. E os óculos certos para ler a política venezuelana são: o petróleo localizado naquela região e a fronteira com o Brasil na região amazônica, ou seja, a biodiversidade e a água potável da região amazônica. A instabilidade na Venezuela sempre foi fomentada pelos Estados Unidos. No período com mais estabilidade na política interna promovida pelo Chávez, ela era fomentada, e nesse período de maior instabilidade, governada pelo Maduro, segue sendo fomentada pelos Estados Unidos. Eu acho que o papel que o Brasil assumiu nesse momento é lamentável, associado ao chamado Grupo de Lima. Não à toa, outros países, que têm a posição mais mediada, como o Uruguai e a própria Argentina, já anunciam que sairão do Grupo de Lima. Por quê? Porque os países da região, sabedores da situação sempre tensa naquele país, deviam buscar construir uma solução mediada, uma solução de paz, que busque resolver, assumir um papel de mediadora dos problemas da região tentando garantir a paz. Isso é algo que o Fernando Henrique fez, não é algo que o Lula inventou. O Lula ocupou esse papel num período mais recente, então a gente sempre tem na memória, “ah, isso é algo do Lula”, que construiu aquele grupo, não lembro como chamava, acho que Grupo de Amigos da Venezuela. Mas é algo que foi criado, pioneiramente, pelo Fernando Henrique, e que os outros países da região se somavam, porque saídas militares não servem ao continente. Então, o Brasil assumiu essa posição, com o Bolsonaro, de uma nova colônia resignada, é quase um governo colonial, parece um príncipe-regente aqui.
EC – Qual sua avaliação da política ambiental do governo Bolsonaro e qual o impacto dessa política na relação com outros países?
Manuela – Ela é um desastre total. A região amazônica sempre foi uma região em que os outros países tiveram muito interesse. Nenhum país é ingênuo para debater a região amazônica. Nem a França, com seus ímpetos coloniais. A gente tem que lembrar que, há menos de 50 anos, a França tinha colônias na África, mantinha uma relação bastante dura, bastante cruel com suas colônias africanas. Então, todos têm interesses e esses interesses são muito claros. O principal deles é a água e a biodiversidade. Por isso, o papel do Brasil deve ser o mais altivo possível, em garantir a soberania sobre a região. O professor Ennio Candotti sempre disse: “por que o estado do Amazonas, há poucos anos, era o que menos tinha floresta destruída com relação ao estado do Pará? Porque era o estado da Zona Franca de Manaus.” Tinha emprego gerado para o povo. Então, as políticas nacionais têm que ser políticas que preservem a floresta em pé, justamente para que o mundo não questione a soberania do Brasil sobre aquela região. O que o Bolsonaro faz é justamente o inverso. Ele destrói um conjunto de órgãos, como o Inpe e a Funai, que são os responsáveis pela manutenção da floresta em pé, pela garantia da vida das populações originárias, ribeirinhas e indígenas e, simultaneamente, se emparceira com os Estados Unidos que têm interesses de estabelecer inclusive manobras militares. Me parece um discurso para legitimar a intervenção dos seus parceiros. Porque de ingênuo ali não tem nada. Aqueles que defendem a floresta e a soberania nacional têm que estar atentos, porque são dois pilares do nosso discurso. Nem só a floresta, nem só a soberania sobre o território amazônico. São os dois. Que eu acho que nós corremos o risco de nos abraçarmos só num dos dois pilares.
Muitos dizem assim: “esse governo não tem um projeto”. Tem, sim. O projeto é a destruição do Brasil. Nós construímos muito, nosso país é um país novo. Muitas pessoas falam assim “a gente não tem nada”, mas a gente tinha muito, a gente tinha uma Petrobrás que descobriu o Pré-Sal em pouquíssimo tempo; a gente tinha uma Eletrobras que produzia 70% de energia limpa, num mundo onde os países não produzem energia limpa. Muito do que nós tínhamos, sendo um país tão jovem como o Brasil.
EC – Quais os impactos das reformas trabalhistas e da Previdência propostas pelos governos de Michel Temer e Bolsonaro para a sociedade brasileira?
Manuela – Quando a gente caracteriza o governo Bolsonaro como governo neocolonial, para mim, a junção dessas duas reformas, a trabalhista, originária do governo Temer, e a previdenciária, como uma política já deste governo, simboliza bem o tipo de mão de obra de países que são colônias, que é o trabalho escravo, no caso do Brasil. Que país é esse que vai sobrar se a gente não agrega valor ao que a gente produz? A reforma trabalhista gera subemprego, vai gerando cada vez um trabalho de menor remuneração, sem direitos. Com qual perspectiva? A da não aposentadoria. É o empobrecimento e a exploração dos nossos trabalhadores.
EC – Justamente, numa conversa recente com o Fernando Haddad, você falou da falta de perspectivas de desenvolvimento de um país que não investe em educação, ciência e tecnologia. Como isso afeta nossos jovens e o futuro do país?
Manuela – No caso do Brasil, a ideia de desenvolvimento nacional necessariamente passa pela universidade, diferente de outros países. Às vezes, a direita, os liberais, dizem assim: “ah, nos EUA não tem investimento em universidade pública”. Em parte, é verdade, mas tem investimento em ciência, a partir do Ministério da Defesa, por exemplo, assim como em Israel. No Brasil, a produção de ciência básica se dá na universidade pública e não existe perspectiva de desenvolvimento sem investimento em ciência e tecnologia. Se a gente não tem produção de ciência e tecnologia, qual a perspectiva de nos desenvolvermos plenamente enquanto Nação? Junto a isso, tu vês a destruição das nossas estatais, como é o caso da Petrobras, da Eletrobrás, da Embraer, empresas que têm essa ideia também, de ciência, de soberania nacional, a ideia de um país, uma Nação. Quando se soma isso, o que sobra de trabalho? O trabalho de baixa remuneração. A imagem do que está acontecendo é a imagem de uma grande nova colônia, com o trabalho altamente precarizado, no presente e no futuro.
EC – Você consegue vislumbrar a possibilidade de uma reversão de toda essa destruição que está sendo posta em prática desde a destituição da ex-presidente Dilma Rousseff?
Manuela – O Requião propôs um referendo revogatório dessas medidas e eu acho que esse é um caminho. Nós pensarmos em medidas revogatórias, porque são medidas anti-pátria mesmo, anti-povo. Como imaginar qualquer caminho para o desenvolvimento nacional se nós não tivermos empregos formais? Existe algum caminho que não gere uma previdência deficitária se nós não tivermos trabalho formal? Eles criaram algo sórdido. Os referendos são caminhos democráticos, de ouvir a população, para que nós voltemos a ter direitos, direitos que conseguimos em outros momentos com muita luta popular. Nós ouvimos muito pouco o povo brasileiro. E acho que também os referendos têm esse sentido de ampliar os espaços da democracia.
EC – Que avaliação você faz da atual administração municipal de Porto Alegre?
Manuela – Acho que o governo Marchezan tem a cara dos governos atuais de direita no Brasil. São governos que destroem os mecanismos básicos de atendimento à população, porque não colocam as pessoas no centro da política. Na verdade, quando nós olhamos os governos de direita, o que a gente vê? A gente vê que o ser humano não é o centro. O centro não é se a pessoa, de manhã cedo, consegue deixar o seu filho na escola ou não, mas são outras coisas. Por isso, a destruição tão permanente do serviço público, por isso esse conjunto de postos de saúde que fecham e abrem, por isso que nós tivemos, no início desse governo, os ônibus interrompidos nos dias de vacinação. Quando se olha o surto de sarampo, ninguém lembra que os ônibus foram interrompidos, e que para as pessoas que não têm dinheiro, o ônibus é essencial para poder se deslocar e poder se vacinar. Como ninguém lembra que a principal causa de os alunos saírem do Julinho (Colégio Júlio de Castilhos) é o preço da passagem de ônibus? Porque as pessoas não fazem parte das políticas públicas nos governos de direita. Então esse governo é um desastre. Por isso a reprovação dele é tão alta. A tristeza tomou conta das pessoas e das ruas de Porto Alegre. É a tristeza da grama alta, mas a grama alta vai ser cortada até a eleição, porque é o mais fácil de tudo. Nós vivemos há quatro anos com a grama alta, exceto em alguns bairros da cidade em que a grama é sempre cortada, porque a iniciativa privada gosta de parcerias nos bairros ricos. É a tristeza das obras inacabadas desde a Copa. A Copa do Brasil acabou e já tivemos uma Copa e meia depois. Esses dias teve uma criança resgatada de dentro de uma obra abandonada, de um buraco das obras da vila Tronco. Essas pessoas não existem para esses governos.
EC – Pesquisa do Instituto Methodus divulgada no dia 8 de outubro a coloca na liderança para a prefeitura de Porto Alegre nas eleições do próximo ano. Podemos dizer que é pré-candidata?
Manuela – Para mim, a pesquisa dá dois recados. O primeiro é que, sim, eu estou na liderança, mas que nós temos muito mais força porque estamos todos juntos. Então, para mim, o que a pesquisa captura é que nós temos que ter a maturidade de construir a nossa unidade. Eu não sei como nós construiremos a nossa unidade.
EC – Essa unidade já vem sendo discutida nos últimos tempos?
Manuela – Sim, ela vem sendo discutida. E nós temos algumas formas. Alguns acham que ela deve ser construída por prévias, outros acham que temos capacidade de construí-la dialogando entre as direções partidárias. Para mim, qualquer forma que nós chegarmos a ela, é uma forma. Mas o que eu acho importante é que nós cheguemos a ela. Porque nós temos consenso no que há de mais importante: que esse governo é um desastre, que desrespeita os porto-alegrenses, que não coloca as pessoas no centro das ações da prefeitura e que nós precisamos vencer. Se nós temos consenso nisso, nós temos que ter condições de estarmos unidos. Então para mim, isso é o mais importante da pesquisa: juntos, nós somos muito fortes, temos muito mais força. E eu posso ser candidata, se eu for o nome que tiver mais condições de construir essa unidade.
EC – Você está disponível para estar à frente de uma chapa?
Manuela – Para a construção dessa unidade, sim. Se outro nome construir a unidade desses três partidos, eu não serei empecilho para isso. Podem ser três, podem ser quatro, podem ser cinco. Então, se PT, PDT, PSB, PCB, PSol e PCdoB chegarem a um acordo em torno de qualquer nome, eu serei a primeira a apoiar esse nome. Eu acho que o mais importante é nós olharmos isso daquela pesquisa. Eu sou uma pessoa que tem 17 pontos, mas eu chego a 25, quando os três estamos juntos. Eu fui a única testada com os três juntos. Então, o que revela, é a nossa força, a força dos três juntos. E depois, dos quatro juntos, eu chego a 27 com os quatro juntos e acho que nós temos essa obrigação com Porto Alegre. Eu sou muito grata por ser a que lidera. Isso diz muito, eu sou uma pessoa que é cotidianamente atacada pela família Bolsonaro, que é todos os dias destruída pelas fake news, e isso significa que Porto Alegre me conhece. E isso, não tem nada no mundo que pague, a minha cidade me colocar em primeiro lugar nas pesquisas. Porque significa que no meu lugar me conhecem, aqui as mentiras não pegam. Mas, politicamente, o mais importante é que a nossa unidade pode ganhar as eleições e eu espero que a gente saiba construí-la.
EC – Recentemente, você declarou em uma rede social “quem luta contra essa gente tem que ter medo, e eu tenho” referindo-se aos ataques recebidos de um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro e de Olavo de Carvalho em razão das repercussões das revelações feitas pelo site The Intercept. O que especificamente você teme?
Manuela – Como todas as pessoas lúcidas, eu temo a morte. Como eu não sou alguém desajuizada e eu vivo no país em que a Marielle Franco foi executada (a vereadora do PSol do Rio de Janeiro e seu motorista, Anderson Gomes, foram executados por milicianos em 14 de março de 2018 no Estácio) e em que a polícia não esclarece a execução, eu temo a morte. Mas eu também sei que não tenho como não lutar contra esse governo. Então, para mim é muito claro, quando o Eduardo Bolsonaro e o Olavo de Carvalho estimulam a milícia virtual deles com agressões, eles sabem que flertam com lobos solitários. Eu sei quem são as pessoas que eu encontro nos eventos que organizo. Então eu sei quem são essas pessoas, como alguns de vocês também sabem. Mas eu não tenho outra opção. Eu decidi continuar vivendo no Brasil e continuar lutando contra eles.
EC – Passou pela tua cabeça, em algum momento, sair do Brasil?
Manuela – Continuar fazendo política hoje no Brasil é uma escolha cotidiana. O Lênin dizia que ser revolucionário é uma opção cotidiana. Então, para mim, todos os dias têm sido uma escolha continuar fazendo política aqui. Porque o nível de ameaça com que nós lidamos é muito intenso. E eu sou alguém muito responsável com a minha vida. Eu sou alguém que tem 38 anos e que chegou até aqui caminhando com os próprios pés. Eu não tenho um pai presidente da República, eu sou de um partido pequeno, eu construí tudo com a minha militância e dos meus camaradas. Então, se tem algo que eu sou, é muito responsável comigo, com a minha militância e com a vida dos meus familiares. Não sou dada a essas falas que eu julgo muito vinculadas a esse padrão heteronormativo messiânico dos grandes líderes da política, que faz parte de algo também a ser combatido pelos políticos de uma nova política. Eu não nasci com vocação para vender um discurso de heroína.
Eu sou humana e assumir que eu faço política com medo no Brasil de hoje não é nenhuma grande revelação. Toda nossa militância tem medo. A gente sobrevive desde pequena com medo. Eu ensino minha filha a atravessar na faixa com medo: “olha para os dois lados!” Não é assim? Isso a impede de atravessar a rua? Ao contrário. Isso a ensina a atravessar a rua. E é assim que eu faço política.
EC – Sobre as agressões e ameaças que você recebe nas redes sociais, que medidas judiciais foram tomadas? Houve alguma punição aos agressores?
Manuela – Eu achei incrível que o prefeito Marchezan, a primeira vez que o prefeito sofreu uma ameaça com a família dele, a Polícia Civil descobriu rapidamente a pessoa que estava lá em Goiânia. A pessoa rapidamente foi presa lá em Goiânia. E eu fiquei muito feliz, porque isso aconteceu várias vezes comigo e as pessoas nunca foram descobertas. Comigo, nunca conseguiram descobrir ninguém. Eles não descobrem nada. Denunciei várias vezes. Uma vez ameaçaram que iam me matar a machadadas, ameaças de estupro, ameaças horríveis. Nunca pegaram ninguém.
EC – Em manifestações recentes, você tem falado na necessidade da construção de uma Frente de Defesa da Democracia e Antifascista. Eu gostaria que falasse um pouco a respeito disso.
Manuela – Eu sou muito responsável com o uso das palavras. Então, o que caracteriza os membros que estão no governo, e que apoiam o governo, como fascistas são algumas características da prática deles, a principal delas é a desumanização dos adversários. Por exemplo, quando minha filha é agredida, com 40 dias de idade, e eu sou agredida repetidas vezes, não acho que eu sou agredida enquanto pessoa, que a minha filha é agredida enquanto uma criança, ela é agredida como “a filha da comunista e eu como comunista”. Portanto, ela é um alvo a ser exterminado. Como eram as crianças que eram torturadas na ditadura, se tornam um alvo a ser exterminado. Isso é o que a Hannah Arendt trata como a desumanização do adversário, a criação de um inimigo comum. E isso os meus adversários fazem, não todos, mas alguns. Existem muitos flertes dessa turma com o fascismo. É importante que nós saibamos que não estamos apenas diante de um governo de direita. Nós estamos diante de um governo que permanentemente ameaça a democracia. E por isso nós temos que ter responsabilidade e nos aliarmos com todos aqueles que defendem a democracia e são antifascistas. Não dá para ter do nosso lado na defesa da democracia só quem sempre soube que era golpe, quem sempre defendeu o Lula Livre.
As pessoas vão tomando consciência ao longo do processo. Se a pessoa não sabia que era golpe, mas agora se deu conta que tem a democracia ameaçada, meu amigo, seja bem-vindo porque eu estou num país em que eu faço política com medo de ser executada. É importante que nós nos juntemos, todos os que lutam contra as ameaças à democracia.
EC – Passados quatro meses dos primeiros conteúdos revelados pelo site The Intercept Brasil, eu gostaria que você fizesse uma análise desses vazamentos e das medidas que foram ou deixaram de ser tomadas pela Justiça brasileira a partir dessas revelações.
Manuela – Na verdade, eu acho que o que o Intercept vazou, ao longo desse período, uma parte de nós já imaginava que acontecia e já denunciávamos: a operação Lava Jato foi uma operação política, o que nós chamamos de low fair, a construção do estado judicial, que constrói juridicamente um conjunto de ações políticas. O que nós denunciávamos a partir de outros elementos que tínhamos, nas próprias sentenças. Nós conseguimos captar isso na realidade. São medidas comprobatórias disso. E eu espero que agora nós tenhamos, no sistema jurídico, punições aos envolvidos.
EC – Sérgio Moro e Deltan Dall’Agnol serão punidos?
Manuela – Eu acho difícil, mas eu tenho visto que o Supremo Tribunal Federal tem reagido com algum grau de intensidade, no entanto, o Conselho Nacional do Ministério Público não tem uma tradição de punir os seus membros. Não é a tradição. Mas as tradições também estão aí para serem quebradas. Quem sabe? Sou uma esperançosa.
EC – Você tem mantido contato com o Glenn Greenwald? Tem conversado com ele a respeito das matérias que estão publicando e sobre o que ainda será revelado?
Manuela – Não, eu nunca conversei com o Glenn sobre as matérias. Quando eu sugeri que fosse ele o jornalista, eu sabia que isso ia ser um trabalho dele.
EC – Ser uma das grandes vítimas das fake news acabou te levando a criar o instituto E se fosse você? Que trabalho o Instituto vem desenvolvendo e quais os resultados alcançados até o momento?
Manuela – Nós criamos o Instituto em fevereiro desse ano e estamos permanentemente ajustando as nossas vocações. Hoje, nosso foco central é produção de conteúdo virtual para buscar sensibilizar as pessoas sobre a potência das fake news. Como eu não acredito que toda a população brasileira é fascista, eu acho que a maior parte delas entra no método de construção do fascismo que é a distribuição de notícias falsas. Tentamos quebrar isso, humanizando os personagens ou colocando conteúdo por trás da desinformação. Distribuímos vídeos com histórias de personagens públicas: Quem é o Jean, quem é a Marielle, quem é a Maria do Rosário, quem é a Lola… Agora, nós estamos com uma nova campanha. Uma vez por semana nós pegamos uma fake news que viralizou e explicamos a verdade sobre isso. Estamos trabalhando com vacinação, Terra Plana, Paulo Freire, urna eletrônica e outros assuntos que foram utilizados para construir esse caldo cultural em torno da extrema direita brasileira. Ao mesmo tempo, realizamos palestras em escolas, ensinamos as pessoas a checarem o que é verdadeiro e o que é falso.
EC – No seu primeiro livro, Revolução Laura, entre outras questões, você aborda o feminismo e a liberdade. O que é ser uma feminista?
Manuela – Eu gosto muito daquela frase que diz que o feminismo é aquela ideia muito radical de que nós somos pessoas com dignidade. Porque talvez uma grande parte da humanidade não tenha noção de como as mulheres não vivem com dignidade no mundo. De como é diferente a vida das mulheres e dos homens e como aquilo que nós chamamos de cultura reveste uma vida marcada por muita diferença e uma diferença para muito pior. Como as mulheres trabalham mais que os homens, como as mulheres sofrem mais violência que os homens, outros tipos de violência diferente que os homens, como as mulheres sentem mais medo que os homens de andar na rua. Como é diferente ser mulher, para pior, do que ser homem numa sociedade como a nossa. Tem uma frase da Márcia Tiburi, que para mim é a mais bonita de todas, estou até me convencendo a tatuar, que é “o feminismo é o contrário da solidão”. Porque quando nós nos encontramos como mulheres feministas, nós entendemos que muitas das coisas que nós achamos que são problemas nossos, que nós passamos a vida inteira sozinhas sentindo, são coisas que todas as mulheres sentem. É muito potente essa ideia de que o feminismo é o contrário da solidão por isso, porque as mulheres, como nós não tínhamos e não tivemos espaço durante décadas para falar sobre quase todas as coisas que nós vivemos, nós fizemos nossos caminhos solitariamente pensando: só eu que acho que acho que sou mais burra que os outros, só eu que escuto que foi a que deu para o chefe, só eu que tenho medo de andar na rua de noite, só eu que não consigo trabalho por ser mulher, só eu que não tenho com quem deixar meu filho, só eu que não tenho o nome do homem na certidão de nascimento do meu filho. E tudo isso, que é solitário para metade da população brasileira, tem um fio que conduz, que é o machismo, e que quando nós nos encontramos no feminismo, também encontramos respostas para problemas que não são individuais, que são vividos individualmente, mas que são coletivos.
EC – Estás lançando, na próxima semana, Por que lutamos? Um livro sobre Amor e Liberdade.
Manuela – É um livro sobre o feminismo para quem não sabe o que é feminismo. Para quem acha que feminismo é o oposto do machismo, para quem não sabe por que menino tem que brincar de boneca, para quem acha que ideologia de gênero existe. Ele é um livro escrito para pessoas de todas as idades, mas pensando que existem pessoas que não têm a mesma consciência que nós e que também têm o direito de saber. Uma das coisas que mais me preocupa é que nós não queiramos falar com quem não sabe. E que nós desistamos de falar com quem pensa diferente da gente. Então, ele é um livro sobre feminismo, claro, para quem é feminista, mas, sobretudo, para quem não é. Para quem não sabe o que é. Ele é um livro que tem conceitos básicos, conceitos que a gente incorpora no discurso e acha que as pessoas nasceram sabendo. Elas não nasceram sabendo, nós não nascemos sabendo.
EC – De que forma a maternidade transformou ou influenciou a tua atuação política?
Manuela – Eu sou outra pessoa depois da Laura. Não por uma visão idealista da maternidade. Acho que eu nunca tive essa visão porque a minha mãe tem cinco filhos e ela nunca me deixou ter essa visão de que era uma maravilha ter filhos. Como eu fui uma mulher que teve muito êxito profissional antes de ter a Laura e sempre ocupei muitos espaços e sofri muito machismo, eu imaginava que eu já tinha me deparado com as situações que o machismo me imporia. Eu já tinha sido a “bonitinha” do Congresso e já tinha sido líder da minha bancada num lugar onde nenhuma mulher era líder. Então, eu achava que sabia o que é o machismo, eu já estive no ápice do que a minha profissão pode me dar de espaço e já enfrentei isso. E aí eu me dei conta que, que na verdade, talvez o que eu possa viver, enquanto mulher branca, talvez o que estruture mesmo o machismo seja a maternidade, porque até a maternidade, no fundo, no fundo, estava tudo ok. Mas a minha existência com a Laura, ela é perturbadora para os homens.
EC – A frase Lute como uma garota, estampada em uma camiseta, se popularizou como uma de suas frases mais usadas no Brasil, principalmente entre as mulheres jovens, a partir da campanha presidencial. Afinal, qual é a luta ou quais as lutas da Manuela d’Ávila?
Manuela – Para mim, lutar como uma garota é dizer “Sim, é possível reinventar a política. É possível, depois de ter concorrido à vice-presidente, pegar o carro e pagar a gasolina desse carro vendendo camiseta, como eu faço.” É não querer ocupar um grande cargo, e não achar que isso é menos, mas achar que isso é extraordinário, porque isso me permite falar, em Arroio Grande, com pessoas que nunca ouviriam um candidato a vice-presidente da República que foi para o segundo turno. E é isso que tem sentido. Para mim, lutar como uma garota é achar que o mais legal é estar nessa sala agora, sustentando a atividade do Instituto com a doação do dinheiro do meu próprio livro. Lutando para conseguir grana com outros parceiros e com outros projetos, sendo que eu sei que eu poderia ter caminhos mais fáceis. Não tem preço chegar em Jaguarão na quinta de noite e poder falar com 400 mulheres. É isso que me fez entrar na política.