Aliança entre governo Bolsonaro e radicais de direita ameaça democracia
Fotos: Redes Sociais/ Reprodução
A atuação dos 300 do Brasil é a face mais visível, mas não a única, do aumento exponencial de manifestações de cunho autoritário, paramilitar e francamente fascistas no Brasil pós-Bolsonaro. Desde a eleição, uma militância furiosa, armada e fora de controle gravita em torno do capitão reformado, disseminando um discurso de ódio e manifestações de racismo, xenofobia, crimes contra a vida e intolerância religiosa – além de apologia ao nazismo
O episódio ocorreu na quarta-feira, 13 de maio, na saída matinal do presidente do Palácio da Alvorada – residência oficial de Jair Bolsonaro: um grupo de dez acampados da milícia autodenominada 300 do Brasil, que defende o fechamento do Congresso e do STF e a implantação de um regime militarizado no país, entoou durante um minuto palavras de ordem contra o regime democrático, sob o olhar complacente do capitão reformado.
“Eu já falei, vou repetir, é Bolsonaro quem manda aqui” era o mantra do grupo, cantado em clima de comemoração. A militante neonazista Sara Winter liderou o ato de insubordinação.
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Bolsonaro, aliás, não se limitou a observar o grupo, classificado como “milícia armada” pelo Ministério Público do Distrito Federal (MP/DF) e alvo de ações judiciais de cunho criminal: cumprimentou a ativista e a chamou pelo nome.
Sara, que se apresenta como líder e porta-voz do grupo, conversou com o presidente. Os dois estiveram juntos na campanha eleitoral de 2018.
“Obrigada por tudo! Por fazer isso em apoio ao senhor, pais e mães de família estão agora sendo investigados”, vociferou a ex-servidora do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
No mesmo dia, o MP/DF ingressou com uma ação judicial solicitando busca e apreensão de armamento irregular no acampamento. A recomendação de que a Polícia Militar desmontasse o local para resguardar a segurança pública foi negada pelo juiz Paulo Afonso Chavichioli Carmona, da 7ª Vara da Fazenda Pública do DF. Alegou “direito de reunião e manifestação no espaço público” – embora a Constituição, no artigo 5°, proíba associações de caráter paramilitar.
A eleição de Bolsonaro atiçou e, de certa forma, aglutinou uma direita extremada, que flerta com o neonazismo, em torno da figura presidencial
A atuação dos 300 do Brasil é a face mais visível, mas não a única, do aumento exponencial de manifestações de cunho autoritário, paramilitar e francamente fascistas no Brasil pós-Bolsonaro.
CRUZ DE FERRO – Ex-militante feminista, Sara Winter – cujo nome verdadeiro é Sara Fernanda Giromini – tem 130 mil seguidores no Twitter e mais de 250 mil no seu canal de Youtube e simpatias declaradas pelo nazismo, a ponto de ter tatuada, no ombro esquerdo, uma cruz de ferro, símbolo frequentemente associado a Hitler. Seu nome de guerra é uma homenagem à militante fascista de origem inglesa Sarah Winter, que ajudou a criar a União Britânica de Fascistas nos anos 1940.
Sara apresenta o grupo como “o exército” de Bolsonaro na luta “pelo fim do comunismo” e contra a corrupção. “Estamos com o senhor para o que der e vier”, concluiu. O presidente respondeu: “Minha base é (sic) vocês”. No sábado 30 de maio, à noite, Sara mobilizou duas dezenas de militantes para marchar com tochas e máscaras em frente à sede do STF, numa alusão clara aos métodos da organização racista norte-americana Ku Klux Klan.
Patologia social: denúncias de manifestações neonazistas na internet aumentaram de 87 para 307 em um ano
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A antropóloga Adriana Dias, que estuda manifestações da extrema-direita no Brasil há 20 anos, pondera que há uma clara relação entre a eleição de Bolsonaro e o crescimento do discurso de ódio no país, que inclui uma gama de manifestações de racismo, xenofobia, crimes contra a vida e intolerância religiosa – além de apologia ao nazismo.
Durante a eleição de 2018, de acordo com o levantamento da SaferNet, as denúncias de crimes cibernéticos envolvendo manifestações neonazistas cresceram cinco vezes entre o primeiro e o segundo turnos, em outubro.
Nos últimos 12 meses, segundo a mesma fonte, o panorama se repetiu: entre abril do ano passado e abril de 2020, o aumento no número de alertas à ONG sobre manifestações neonazistas na internet passou de 87 denúncias para 307 – uma alta de 253%. Adriana Dias acredita que há uma perigosa tolerância com essas ações, que estão tipificadas criminalmente tanto na Constituição quanto no Código Penal.
“Geralmente as pessoas classificam essas mensagens como coisa de crianças, como bravatas. Está na hora de parar de brincar com essas manifestações, que mostram um grau excessivo de patologia social. Estamos mansos demais com esses neonazistas”, afirma a pesquisadora. O presidente da SaferNet, uma ONG que desde 2005 recebe denúncias de crimes cibernéticos, concorda: “Geralmente essas atividades não se encerram numa postagem”, adverte Thiago Tavares.
Extrema direita e o neonazismo
A eleição de Bolsonaro atiçou e, de certa forma, aglutinou uma direita extremada, que flerta com o neonazismo, em torno da figura presidencial. A antropóloga, que no seu trabalho de pesquisa detectou 334 grupos neonazistas em atuação no Brasil no final de 2019, diz que o crescimento dessas manifestações é assustador.
“O problema é que o limite vem subindo na mesma velocidade. O que antes era imoral, hoje vai se tornando palatável para uma camada social que se sente reprimida em seus direitos”, constata Adriana.
Foto: Facebook/ Reprodução
O delegado Leonel Radde, que tem se especializado em estudar os grupos de extrema-direita que afloram no país, recomenda que se leve a sério esses movimentos, geralmente tratados como inofensivos.
“Pelo contrário: são criminosos que desrespeitam as leis ao exaltar ideologias banidas legalmente e que pregam uma ruptura institucional. Infelizmente, a reação social a esses grupos, que estão se multiplicando com velocidade, tem sido débil demais”, opina.
Canais de propagação
Antes circunscritas ao anonimato da deepweb, essas mensagens têm cada vez mais usado as redes sociais como principal canal de propagação. Um dos grupos mais ativos já identificados pelos investigadores atua na Região Metropolitana de Porto Alegre.
Numa troca de mensagens com amigos no dia 2 de abril, o internauta Wesley Franz se declara anticomunista e diz ter “aliados” por todo o Brasil. A Lei 7.716, de 1989, pune com até cinco anos de cadeia a utilização ou difusão dos símbolos mais óbvios do nazismo
Com outros usuários da rede, menciona que atua para “esmagar os comunas” e informa que passou o nome de um suposto militante antifascista “para o comando”.
E adverte: “pede pra gravar” – em caso de agressão ao denunciado. Franz é integrante de uma banda chamada Oi!diados, de Canoas, um grupo de skinhead rock declaradamente anticomunista. Além da radical postura ideológica, outra característica comum dos integrantes da rede é apoiar Bolsonaro incondicionalmente.
Outros usuários que interagem na rede expõem mensagens de ódio à esquerda, postagens de exaltação à violência, contra a ativista Greta Thunberg e também claramente racistas e homofóbicas. Várias mensagens estão fechadas, acessíveis apenas a pessoas autorizadas.
Em um dos posts, entretanto, uma mulher posta uma suástica como comentário a uma selfie publicada pelo músico. As trocas de mensagens muitas vezes são cifradas. NS, por exemplo, é sigla de nacional socialista, partido de Adolf Hitler que deu sustentação política ao nazismo.
Os usuários também compartilham conteúdos aparentemente sem nenhuma conotação política, mas que têm
Foto: Jefferson Rudy/ Agência Senado
vinculação direta com imagens ou discursos nazistas. Boa parte desses internautas, por exemplo, curte a página de uma organização chamada Tyr Odal Black Order – a reunião de duas bandas brasileiras de metal “para difusão da gnose primordial dos deuses”.
Movimento internacional
Para quem não sabe, Tyr e Odal são dois símbolos usados por movimentos neonazistas mundo afora: Tyr (ou Tiwaz rune) foi adotado pelos nacionalistas da Suécia, enquanto o Odal se originou de regimentos SS, especialmente dos bálcãs.
A pesquisadora Adriana Dias destaca que essa é uma estratégia cada vez mais usada pelos grupos para burlar a legislação restritiva.
“A Lei 7.716, de 1989, pune com até cinco anos de cadeia a utilização ou difusão dos símbolos mais óbvios do nazismo: a suástica e a cruz gamada. Mas há muitos outros que precisam ser coibidos e que têm a mesma simbologia”, explica.
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Mensagens de ódio
No trabalho em que identificou as células neonazistas em atuação no Brasil, a pesquisadora sistematiza também pelo menos duas dezenas desses símbolos variantes da suástica. Alguns deles são largamente usados por bandas de metal do Brasil e do exterior e por muitos dos internautas que se situam nesse novo espectro autoritário.
A banda Oi!diados, de Canoas, e outros grupos de punk rock fazem parte de um gênero conhecido como RAC – Rock Against Comunism, em inglês, ou simplesmente rock contra o comunismo.
Todas as bandas, sem exceção, adotam uma agenda oficial anticomunista, expressa em letras, símbolos e comportamento. O delegado Leonel Radde diz que esses grupos são a principal fonte de difusão de mensagens de ódio atualmente no país.
Uma das principais dessas bandas é a Código de Honra, formada em 2018 em São Paulo e que também adota um discurso antissionista. O grupo iria participar, em maio, do festival This is war II (Isto é guerra), marcado para Santiago do Chile – adiado para outubro devido ao “vírus chinês”, como informa a página oficial da banda.
Local, dia e hora do show são transmitidos apenas por mensagem fechada. A banda também participaria de um festival chamado Sonidos Anti Sionistas, sem informação pública de data ou local para ocorrer.
Heróis neonazistas
Outro ponto comum entre os internautas é a banda sueca Marduk – especialmente o álbum Panzer Division (1999), uma alusão explícita às unidades da “guerra relâmpago” de Hitler constituídas em média por 320 tanques e quatro batalhões de infantaria. Os temas dos álbuns invariavelmente enfocam as campanhas de guerra hitleristas ou heróis do nazismo. A banda Oi!diados pega carona nessa onda e na faixa Revolta skinhead reproduz trechos de marchas nazistas.
As ligações desses grupos com o poder são cada vez mais evidentes, como mostrou o diálogo entre Sara e o presidente Bolsonaro no dia 13 de maio. O mais novo aliado, ex-deputado Roberto Jefferson (PTB/RJ), pediu que o “exército” dos 300 “botasse pra correr” um grupo de 50 opositores do governo que estendeu faixas de protesto na Praça dos Três Poderes.
“Ali não é lugar para vagabundo esquerdista se criar”, vociferou Jefferson em uma rede social. A mesma na qual postou foto armado de um fuzil.
Apoio formal: protegida de Damares, ativista passou a mobilizar a tropa de choque bolsonarista
O acampamento em Brasília, que se instalou em frente à sede do STF no dia 2 de maio e agora ocupa uma área do Ministério da Justiça, tem apoio formal de outras autoridades ligadas ao governo, incluindo a ministra Damares Alves.
Em abril de 2019, Sara Winter foi nomeada coordenadora de atenção integral à gestante e à maternidade da pasta. Não foi uma escolha aleatória: Sara nasceu em São Carlos, interior de São Paulo, cidade onde a ministra, a quem ela chama de “segunda mãe”, iniciou sua formação política junto a evangélicos conservadores.
Foto: Acervo Pessoal
As famílias das duas colaboradoras são muito ligadas. Sara é protegida de Damares e de seu mentor, o ex-senador Magno Malta. Damares, que era chefe de gabinete do então senador, foi quem acolheu a ex-feminista em sua casa em Brasília, em 2017, quando ela foi assessora parlamentar “informal” de Malta e também atuou na ONG Brasil sem aborto, criada pelo ex-parlamentar em 2007.
A ativista deixou o ministério em outubro passado e, desde então, dedica-se a mobilizar a tropa de choque bolsonarista.
“Pessoas de bem”
A deputada Carla Zambelli (PSL/SP), que tem mais de 800 mil seguidores no Twitter, gravou um vídeo de 10 minutos no acampamento, no dia 11 de maio, conclamando que as pessoas “de bem” se integrem aos 300 do Brasil.
“Pode ser sim que algumas batalhas a gente perca, mas guerra a gente não vai perder. É uma guerra espiritual, do bem contra o mal”, disse aos manifestantes. Outras apoiadoras incondicionais são as deputadas federais Bia Kicis (PSL/DF) e Caroline de Toni (PSL/SC).
Perguntada sobre os limites desses grupos num ambiente de tensão cada vez maior, a antropóloga Adriana Dias resume sua opinião: “Não tenho ideia de até onde podem ir. E nem do que podem fazer”.