Ministério Público pede explicações a Pazzuello sobre desmonte das políticas de saúde mental e drogas
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Atendendo a pedidos de mais de 100 entidades, o procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Alberto Vilhena, solicitou na terça-feira, 15, ao ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que encaminhe no prazo de cinco dias, uma série de informações sobre as medidas adotadas pela pasta que visam alterar políticas públicas de saúde mental e de drogas no Brasil.
A solicitação atende a pedido formulado em representação assinada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e por mais de 120 entidades, órgãos públicos, coletivos e movimentos sociais. Eles denunciam a promoção de ações pelo Ministério da Saúde (MS), que teriam o propósito de realizar desmonte significativo na política nacional de atenção à saúde mental.
No ofício, Vilhena pede que sejam especificados os atos normativos que estão em análise, bem como as justificativas que levam à conclusão de que portarias seriam consideradas obsoletas. Solicita ainda cópia da portaria de criação do grupo de trabalho sobre saúde mental, informado pelo próprio site do ministério, e seus atos praticados.
Entre os documentos a serem encaminhados à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão ligado ao Ministério Público Federal (MPF), devem constar cópias de atas, estudos técnicos que embasam iniciativa de revisão dos atos normativos e a apresentação de documentos já encaminhados ao Conselho Nacional de Saúde. O procurador federal dos Direitos do Cidadão quer ainda que o ministério indique quais entidades foram convidadas para participar das deliberações sobre a alteração de normativos relacionados à Política Pública de Saúde Mental e à Política Nacional sobre Drogas.
Frente Parlamentar critica internações em comunidades terapêuticas
Foto: Michel Jesus/ Câmara dos Deputados
No mesmo dia em que o ministro Pazzuello foi combrado pela PFDC/MPF, participantes de reunião virtual promovida pela Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial criticaram, nesta terça-feira, 15, a internação de adolescentes, principalmente negros e pobres, em comunidades terapêuticas para tratamento de dependência química. O argumento deles é que essas entidades aprisionam, em vez de curar.
Em geral ligadas a movimentos religiosos, as comunidades terapêuticas aplicam a abstinência como forma de interromper completamente o uso de álcool e outras drogas, em oposição ao modelo da redução gradativa. Uma vez dentro dessas entidades, o paciente suspende o vínculo com a comunidade exterior.
Uma norma deste ano – a Resolução 3/20 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) – regulamenta o acolhimento de adolescentes com problemas decorrentes do uso, abuso ou dependência do álcool e outras drogas em comunidades terapêuticas.
A avaliação da coordenadora da frente parlamentar, deputada Erika Kokay (PT-DF), é a de que há um retrocesso e que a lógica manicomial está presente nas comunidades terapêuticas.
“Os manicômios despersonalizam e cronificam as crises identitárias e provocam imenso sofrimento. São políticas que negam o que este país conquistou por meio da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial”, afirmou Kokay.
Conforme lembrou a integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) Heloisa Dantas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) preconiza o direito à convivência familiar e comunitária, e não a cultura da institucionalização nem a lógica asilar, tão presente na história brasileira.
“É comunidade uma instituição asilar que promove o afastamento do adolescente das atividades comunitárias? Setenta e quatro por cento dessas instituições estão em área rural. Como se pode dizer terapêutica uma instituição que retira a liberdade à voz, a autonomia dos adolescentes?”, questionou a conselheira.
Heloisa Dantas também pôs em questão se o “uso de drogas” é justificativa para a internação em comunidade terapêutica, quando o ECA define que o acolhimento deve ser excepcional e provisório, nos casos em que os direitos das crianças e dos adolescentes estejam ameaçados e violados.
Privação de liberdade, violação de direitos e tortura
Para a reunião, a assistente social do Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil de Lagoa Santa (MG) Andrêza Alves trouxe resultados de uma inspeção realizada em outubro passado na comunidade terapêutica de atendimento a adolescentes “Centro de Recuperação Álcool e Drogas Desafio Jovem Maanaim – Projeto Vida Movimento para Recuperação Humana”, em Minas Gerais. A ação foi realizada por entidades de direitos humanos, combate à tortura e saúde mental.
Os relatos são de violações de direitos no local, com isolamento, discipulado bíblico e religioso, trabalho forçado, punição, restrição, violência e tratamento desumano e degradante dos internos. “Mesmo se regulamentando este tipo de internação que é totalmente arbitrária, totalmente contra qualquer dispositivo do ECA, as comunidades terapêuticas se mantêm como lugar de tortura, de privação de liberdade e de isolamento social”, disse Andrêza Alves.
O documento elaborado após a inspeção dá conta ainda da precariedade da estrutura, inadequação alimentar e a localização do centro ao lado de um lixão, onde adolescentes trabalhariam capinando.
Fiscalização
O texto traça recomendações para vários órgãos e aponta para a necessidade de fiscalização da destinação de recursos públicos.
O historiador Guilherme de Melo, da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), chamou a atenção para a verba que chega via emenda parlamentar. “Essas emendas estão financiando e o governo federal está financiando tortura quando manda dinheiro para esse tipo de instituição”, declarou.
Melo defendeu que se cobre – e a frente parlamentar poderia ajudar nisso – um posicionamento da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) não só sobre o caso específico de Minas Gerais, mas também sobre a Resolução 3 do Conad.
Reportagem do Extra Classe aponta uso político e comercial das comunidades terapêuticas
Conforme a reportagem Drogas, internação compulsória e uma epidemia que dá lucro publicada pelo Jornal Extra Classe em junho de 2019, há uma relação estreita entre a sanção presidencial da lei de internação compulsória de usuários de drogas, no início de junho, e o crescente empoderamento das Comunidades Terapêuticas no governo Bolsonaro – que passaram, com a lei federal (13.840), a fazer parte do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas.
Frequentemente vinculadas a igrejas neopentecostais, base importante de apoio do presidente Jair Bolsonaro, esses centros, a partir da nova legislação, passaram a receber mais recursos da União e devem ser valorizados politicamente com a sanção da lei, que prescinde da concordância do usuário para a realização de um tratamento radical que pode, segundo especialistas ouvidos pela reportagem do Extra Classe, ter sérias consequências para os internos, principalmente porque tem a religião como base de sua terapia.
Inspeções feitas pelo MPF apontam violações de direitos desde 2017
De acordo com a mesma reportagem, inspeções feitas em 2017 pelo Ministério Público Federal, Conselho Federal de Psicologia e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura em Comunidades Terapêuticas revelaram uma série de violações aos direitos humanos, camufladas como ações de tratamento do paciente. A coleta de informações envolveu avaliação dos espaços físicos, entrevistas com usuários, direção e equipes de trabalho, além da análise de documentos das instituições – voltadas especialmente à internação de usuários de drogas.
Entre as violações apontadas no relatório, estão práticas de trabalho forçado e de situações análogas à escravidão disfarçadas de laborterapia – ou seja, a cura por meio do trabalho. Em alguns casos, assinalou o relatório, a laborterapia foi utilizada como ferramenta de disciplina e de correção moral – o que é condenado pelos princípios da reforma psiquiátrica estabelecida no Brasil pela Lei nº 10.216/2001. A mão de obra de internos costuma ser usada para serviços de limpeza, preparação de alimentos, manutenção, vigilância e, em alguns casos, até mesmo no controle e aplicação de medicamentos a outros internos. Foram encontrados, também, casos de cárcere privado, punições e indícios de tortura em 16 dos locais inspecionados.