Entre a liberdade de expressão e os crimes contra a liberdade
Foto: Marcelo Menna Barreto
Foto: Marcelo Menna Barreto
O advogado Pierpaolo Cruz Bottini é listado por seus pares como um dos maiores conhecedores na área do direito sobre liberdade de expressão. Não é à toa que preside a Comissão Especial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) criada na gestão do atual presidente, Felipe Santa Cruz. Professor livre docente do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), ele é doutor em Direito e coordena o curso de Direito Penal do Instituto de Direito Público (IDP) em Brasília, DF.
Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (2005-2007) e à frente do Departamento de Modernização Judiciária do mesmo ministério (2003-2005), então comandado pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, Bottini, ainda bem jovem, já integrava o ranking dos advogados mais poderosos e conceituados do país, ao lado de seu mentor.
Bottini, que já afirmou que “tratar de afronta à liberdade de expressão no Brasil é um pouco tratar da história do Brasil”, diz que o país passa por uma crise política sem precedentes e que, ao contrário do que muito se fala em algumas rodas, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem agido de forma correta no combate aos radicais que, em seu entendimento, buscam afrontar e desacreditar as instituições.
EC – Como diria um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), estamos vivendo tempos estranhos. Lideranças políticas e uma parte da população pedem intervenção militar ao mesmo tempo que clamam por liberdade de expressão. Como o senhor vê isso?
Pierpaolo Cruz Bottini – Essa é uma boa pergunta. Mas, na verdade, o que a gente tem não são pessoas pedindo por liberdade de expressão. Na verdade, o que querem é a não responsabilização por uma demanda por menos democracia, uma demanda por calar os demais. Uma demanda de violência, de agressividade. Esse paradoxo é apenas aparente. Essas pessoas não querem liberdade; querem, sim, manter os canais e a impunidade para que elas possam defender um projeto de arbítrio, um projeto de restrição de liberdade de expressão, um projeto de violência contra o diferente.
EC – Ok. Mas, aí você fala das lideranças que a gente sabe bem quem são. Agora, essas lideranças colocaram pessoas nas ruas e não dá para dizer que todas estão totalmente mancomunadas com essas ideias, não é?
Pierpaolo – Não, mas, na verdade, veja, isso não é nenhuma novidade na história do mundo. Hitler teve amplo apoio popular, Mussolini teve apoio popular. Inúmeros líderes e tiranos tiveram apoio popular. A ditadura de 1964 teve apoio popular! Isso não significa que todas essas pessoas sejam mal-intencionadas. São pessoas que não param para perceber que a pauta que elas “defendem” é uma pauta que, muito em breve, vai se voltar contra elas mesmas. O Mussolini, a burguesia italiana dita esclarecida apoiou e, em pouco tempo, foi prejudicada por ele. Na ditadura de 1964, o Lacerda apoiou o golpe e, em pouco tempo, foi cassado. Então, são pessoas que até podem ser bem-intencionadas, mas não percebem que esse tipo de projeto é um projeto que as prejudica também.
EC – Foi bom você ter falado do Mussolini. Ele é o exemplo de um líder de extrema-direita que ia esticando a corda e não dava certo. Ia esticando a corda e fracassava. Até um dia que deu certo. Guardando as devidas proporções, não parece um pouco o morde-e-assopra que temos visto no Bolsonaro? Não corremos algum perigo?Pierpaolo – É difícil prever. Mas, historicamente, a gente nunca teve no Brasil um autogolpe que tenha sido dado diante de um período de grande recessão econômica e de inflação. Quando você teve o autogolpe de 1937 e o autogolpe de 1968, o Brasil estava passando por um momento econômico muito bom. Isso legitimou o endurecimento dos regimes. O Brasil não está passando por um momento muito bom. A gente não está passando por um milagre econômico. Então, as condições históricas – pelo menos nacionais – para um autogolpe não parecem presentes.
EC – Você falou ser difícil de prever. Ninguém em sã consciência previa que Bolsonaro seria eleito presidente do Brasil.
Pierpaolo – Claro, no Brasil tudo pode acontecer. Como dizia aí o Malan (Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso), “no Brasil até o passado é incerto”. Então, não se pode fazer prognósticos claros, mas, numa perspectiva histórica, as condições não estão presentes, nem apoio popular em massa. Eu vejo riscos de confusões, riscos de violência. Mas ainda não vejo condições de uma ruptura institucional. Mas estou frisando o ainda, certo?
Foto: Marcelo Menna Barreto
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Todos os governos do Brasil tiveram incômodos e desconfortos com a liberdade de expressão. Em maior ou em menor grau. Isso é até natural porque se um governo não tem desconforto com a mídia, é porque a mídia não está cumprindo o seu papel
EC – O senhor já afirmou que “tratar de afronta à liberdade de expressão no Brasil é um pouco tratar da história do Brasil”. Pode discorrer um pouco sobre isso?Pierpaolo – Todos os governos do Brasil tiveram incômodos e desconfortos com a liberdade de expressão. Em maior ou em menor grau. Isso é até natural porque se um governo não tem desconforto com a mídia, é porque a mídia não está cumprindo o seu papel. O que acontece é que você vê em alguns momentos algo além desse desconforto. Você vê projetos estruturais de censura, de rompimento com a mídia. Desde os tempos da Independência. O José Bonifácio de Andrada (patriarca da Independência) tinha envolvimento com o “empastelamento” de jornais; dizem que ele teve envolvimento com a morte do Líbero Badaró. Aí a gente vai para a República, com o Floriano Peixoto, que defendia o “arcabuzamento” daqueles que tinham escritos sediciosos; o Arthur Bernardes, que viveu em Estado de Sítio por todo o seu mandato. Isso para não falar do período conhecido do Getulio Vargas, o da recente ditadura. Então, tivemos na história inúmeros momentos. Aliás, acho que é o Eugênio Bucci quem diz que no Brasil a censura chegou antes da imprensa, porque, quando Dom João VI chegou ao Brasil, fez um decreto de censura e só seis meses depois é que teve um jornal impresso. Infelizmente, a gente tem um convívio histórico com cerceamento da liberdade de expressão.
EC – Veio a Constituição de 1988, então.
Pierpaolo – A Constituição Federal de 1988 já fez um pacto com a liberdade. Ela deixou muito clara a defesa da liberdade de expressão. Ela proibiu expressamente a censura, ela garantiu o direito de sigilo de fonte para os jornalistas profissionais e assim por diante. Agora, a gente precisa ficar alerta e atento para manter esses direitos constitucionais e impedir que eles sejam aos poucos relativizados ou suprimidos. Essa é a batalha que a gente precisa travar.
EC – Na sua opinião, existem ou devem existir limites para a liberdade de expressão?
Pierpaolo – Já existem. A nossa própria Constituição já coloca um limite. A liberdade de expressão está sempre em relação ao outro. Então, veja, você tem um primeiro limite que é a honra. Você não pode caluniar, você não pode injuriar, você não pode difamar o outro. Mas – lembrando que isso não se confunde com a crítica ácida, mordaz – você já tem crimes já descritos no Código Penal contra a honra. Fora disso, você pode defender a ideia que quiser, defender o pensamento que quiser. Desde que isso não implique em violência ou grave ameaça de violação a pessoas, a grupos, a etnias, a religiões, orientações sexuais. Então, o limite da liberdade de expressão é a violência ou ameaça. Assim, se eu quero defender uma proposta absurda, uma proposta pouco inteligente, eu posso. Eu tenho o direito de defender. Eu entendo que no Brasil, assim como nos Estados Unidos, eu posso queimar a minha bandeira, eu posso falar contra a pátria, eu posso vociferar contra os governantes de plantão. Tudo isso é possível. O que eu não posso é incitar a violência. O que eu não posso é ameaçar o uso. Então, quando um político vem e diz “eu defendo o fechamento do Congresso Nacional”, eu, particularmente, não vejo problema nisso. Agora, quando ele diz “vamos entrar no Congresso e pegar os parlamentares na porrada”, como um deles falou ou como o Roberto Jefferson falou, “vamos entrar no Supremo e dar um pescoção nos ministros”, aí ultrapassa. Aí eu vou para a violência ou grave ameaça. Este é o limite da liberdade de expressão.
EC – Uma expressão que li por aí me chamou muito atenção: “Nossa democracia começou a morrer quando, na tribuna da Câmara, um deputado federal homenageou Ustra e não saiu de lá algemado”. O que me diz?
Pierpaolo – Eu acho que quando você homenageia o Ustra, você está afetando a honra e a dignidade de todas aquelas pessoas que foram torturadas. O que se está fazendo, na verdade, é uma apologia ao crime. Apologia ao crime também é crime. Você não está homenageando uma pessoa. Porque homenagear uma pessoa simplesmente não é um problema. Agora, quando você está homenageando as torturas que aquela pessoa fez, os crimes que aquela pessoa praticou, você está fazendo apologia ao crime. Está dizendo que aqueles crimes têm que ser repetidos. Aí, você incide em outro dispositivo do Código Penal.
Foto: Marcelo Menna Barreto
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Já existem. A nossa própria Constituição já coloca um limite. A liberdade de expressão está sempre em relação ao outro. Então, veja, você tem um primeiro limite que é a honra. Você não pode caluniar, você não pode injuriar, você não pode difamar o outro. Mas – lembrando que isso não se confunde com a crítica ácida, mordaz – você já tem crimes já descritos no Código Penal contra a honra
EC – Pois é, o deputado em questão atualmente preside o Brasil. Durante todo o período em que esteve na Câmara, ele usou e abusou do artigo 53 da nossa Constituição que diz que deputados e senadores “são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, proferidos no exercício de suas funções ou em razão delas”. Sobre isso, o que teria a nos dizer?
Pierpaolo – Acho que aqui a gente tem uma falha no funcionamento do nosso próprio Poder Legislativo. Porque ele tem uma inviolabilidade civil e criminal, mas ele não tem uma inviolabilidade do decoro parlamentar. Esse tipo de comportamento é um comportamento que viola o decoro parlamentar e pode, sim, levar à cassação de um mandato. Veja, realmente, eu tenho uma dificuldade de imputar uma responsabilidade civil e criminal, por conta da inviolabilidade, mas eu posso buscar a responsabilização politicamente. Nesses casos, a casa parlamentar que foi ofendida, que é uma casa que deve defender a democracia e o Estado de Direito, no meu ponto de vista, falhou. Porque deveria efetivamente ter submetido essas declarações ao crivo da casa parlamentar sobre o ponto de vista da ética e do decoro parlamentar.
EC – Então, muito se questionaram as manifestações de Bolsonaro na tribuna. Ele foi do elogio à cavalaria americana por ter exterminado indígenas no século 19 até a famosa afirmação de que não estupraria a deputada Maria do Rosário (PT-RS) porque, na opinião dele, ela seria feia. Uma atitude mais forte com o então deputado não seria necessária?
Pierpaolo – Sim! Mais uma vez, digo e entendo que aqui se tem uma quebra de decoro parlamentar. Mas o que mais me causa angústia é que não só ele não sofreu nenhum tipo de admoestação do ponto de vista parlamentar, como ele se candidatou à presidência da República e ganhou falando esse tipo de coisa. Então, isso mostra, mais do que uma pessoa de caráter complicado, uma população que de certa forma tem uma série de, do meu ponto de vista, visões distorcidas de valores, de como funciona o mundo. Então, a nossa sociedade, seja por que razão for, adoeceu quando ela homologou, endossou esse tipo de discurso que ele (Bolsonaro) não deixou de fazer. A gente não está falando de alguém que se propôs a ser uma pessoa moderada ou que rompeu com essas expressões ou pensamentos do passado. Foi uma pessoa que manteve esses pensamentos e foi eleito. Isso foi homologado. Isso é muito mais grave e preocupante do que o fato de, lá atrás, o Poder Legislativo não ter tomado as providências que deveria ter tomado.
EC – Você foi secretário para a Reforma do Judiciário durante a gestão do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Hoje, muitos elogiam a ação institucional do STF para coibir os arroubos autoritários que estão ameaçando a nossa democracia. Por outro lado, há quem veja que, nesse combate, o próprio STF estaria de alguma forma agindo de forma autoritária, prendendo quando não deveria, tolhendo o que acreditam ser liberdade de expressão. Em geral, qual é a sua avaliação?
Pierpaolo – Eu acho que o Supremo Tribunal Federal tem andado bem. Tem tomado as decisões corretas. Não vou entrar em cada uma delas até porque não conheço todas, mas o fato é: quando uma sociedade ou modelo político precisa do seu Supremo Tribunal Federal para garantir a estabilidade institucional e impedir uma ruptura é que algo funciona muito mal na sociedade. Não é para o Supremo que eu preciso olhar. Eu preciso olhar para aquilo que está causando esse desequilíbrio. E a gente sabe bem o que é que está causando esse desequilíbrio neste momento.
EC – Dá para falar um pouco disso que você entende por desequilíbrio?
Pierpaolo – Veja, embates, desconfortos mútuos são questões normais em um Estado Democrático de Direito com três poderes. Nem sempre os três poderes seguem uma mesma linha e você tem um sistema de freios e contrapesos. Agora, quando você entra numa rota de colisão, onde você tem conflitos constantes e onde o Supremo Tribunal Federal é chamado para manter a normalidade através da prisão de pessoas, algo está errado. O sistema precisa olhar para a causa desse desequilíbrio brutal. E a causa desse desequilíbrio brutal, no meu ponto de vista, é o Poder Executivo, que cria crises como uma forma de se legitimar com uma parte do eleitorado. A gente pode discutir muito o nosso modelo de Supremo, o nosso modelo de Judiciário, mas não é isso que, agora, está em questão.