Religiosos e comunidade LGBT comemoram decisão do Papa sobre união homoafetiva
Foto: Vatican News/ Divulgação
A decisão do Papa Francisco, que no início desta semana autorizou sacerdotes a darem a bênção a casais em uniões homoafetivas veio com uma ressalva que não tirou a importância do caráter simbólico da decisão.
Se de um lado aqueles que acreditavam estar diante de uma distensão ou mesmo de uma revolução em meio ao conservadorismo do Vaticano minimizaram o ocorrido, de outro, houve grande comemoração.
“A igreja não tem poder de conferir uma bênção litúrgica a casais irregulares, uma vez que é necessário que ‘o abençoado esteja em conformidade com a vontade de Deus”, justificou-se o pontífice ao explicar que a doutrina divide as bênçãos em “litúrgicas” e “espontâneas”.
No primeiro caso, a doutrina contempla o casamento, a reza de missas e novenas e outros rituais religiosos. Já as bênçãos “espontâneas” destinam-se à contemplação e acolhimento daqueles que não vivem de acordo com as normas da doutrina moral cristã. Ou seja, de acordo com o papa, a igreja católica passa a permitir que sejam abençoadas as uniões homoafetivas, desde que elas “não imitem o matrimônio”. A orientação vale também para outros tipos de relacionamentos considerados “irregulares” pela igreja.
A decisão de “contemplar e acolher” quem não vive de acordo com as normas da doutrina moral cristã, apesar de todas essas reservas, ultrapassou as hostes do catolicismo romano. E é comemorada pela comunidade LGBTQIA+ e evangélicos progressistas.
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Lancellotti: humanização
“A pessoa vem e diz: Padre, me abençoa; eu preciso de uma bênção para me fortalecer, eu estou sofrendo. Você vai dizer o que para essa pessoa? Ah, eu tenho que primeiro saber qual é a sua orientação sexual”, exemplifica o padre Júlio Lancellotti, vigário Episcopal para o Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo.
Ele que é notabilizado pela defesa dos Direitos Humanos e que recentemente teve uma Lei aprovada no Congresso Nacional levando seu nome, vê a decisão como mais uma atitude de humanização do pontífice.
“Você não pode negar o amor de Deus para ninguém”, afirma Lancellotti ao registrar que a postura dentro da Igreja Católica não é nova, apesar de ganhar força com a manifestação pública de Francisco.
Sinais dos tempos
“A declaração, inclusive, coloca que os padres devem se sentir à vontade para fazer isso. É uma orientação para que as pessoas se sintam com tranquilidade, saibam que não está ocorrendo um erro e que a gente não deve fazer disso um simulacro. Não é para fingir que essa bênção é sacramento ou qualquer outra coisa. Não, a bênção é bem dizer a Deus, bem dizer a vida das pessoas”, explica Lancellotti.
Outro sacerdote católico, o jesuíta Bruno Franguelli, entende que a decisão “nasce da escuta dos sinais dos tempos e da sensibilidade pastoral já tão marcante no pontificado do Papa Francisco”.
O religioso que está em Roma em virtude do seu mestrado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Gregoriana, afirma que o documento papal deixa claro que os casais em uniões irregulares para a Igreja podem, sim, ser abençoados.
“A igreja deve evitar basear sua práxis pastoral na rigidez de certos esquemas doutrinários ou disciplinares, especialmente quando eles dão origem a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, os outros são analisados e classificados, e, em vez de facilitar o acesso à graça, a energia é consumida no controle”, ressalta o jesuíta.
Franguelli diz que a Igreja “não faz nada menos que repetir os gestos de Jesus que escandalizam os autodenominados puros, aqueles que se escudam em normas e regras para afastar, rejeitar e fechar as portas”. “E a igreja, como afirma o Papa Francisco, é para todos. Todos”, sublinha.
Foto: Reprodução
Decisão revolucionária
Tanto Lancellotti quanto Franguelli deixam claro que não há na postura de Francisco uma ruptura em questões da doutrina Católica.
Os dois religiosos lembram que o documento da Santa Sé distingue as chamadas bençãos sacramentais e litúrgicas das ditas populares e pessoais.
Apesar disso, há analistas e ativistas do mundo inteiro que colocam a definição de Francisco ao nível de uma Revolução.
“Quem diria que eu estaria vivo para ver, ouvir, sentir e aproveitar essa decisão da Santa Madre Igreja. Eu sou Católico Apostólico Romano”, declara Toni Reis, Diretor Presidente da Aliança Nacional LGBTI+ e da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas.
Ele afirma que vê “com muita alegria” a decisão da Igreja Católica. “Se a Igreja Católica está mudando, o mundo também pode mudar. É um grande incentivo para ter esperança para dias melhores”, afirma.
Reis lembra que a mesma igreja através da Inquisição na Idade Média colocava as pessoas LGBTI+ na fogueira. “Agora essa bênção dos casais do mesmo sexo!”, contrapõe.
Uma decisão Reis diz que já tomou. “Pessoalmente, estou casado pela Igreja Anglicana já há alguns anos. Meu marido é anglicano. Mas já estou me preparando e vou conversar com nosso arcebispo e com nosso padre para ter a bênção da Igreja Católica também”, revela.
O pastor que enfrentou Malafaia e Valadão
Foto: Reprodução
Líder da Igreja Reina, o pastor e psicólogo Hermes Fernandes, vê o Papa como um ‘mensageiro do futuro’.
“Alguém que já esteve lá e voltou para nos desafiar a avançar em direção a um mundo mais justo, igualitário e solidário”, justifica.
Fernandes apesar de prever “uma sangria na Igreja Católica, pelo menos em curto e médio prazo” que deve beneficiar igrejas evangélicas alinhadas ao discurso ultraconservador, analisa a atitude de Francisco como extremamente corajosa.
“Eu sou muito grato a Deus por ser contemporâneo deste homem (Francisco). Não é a primeira vez que ele dá um passo corajoso em defesa da população LGBT. Em 2020, ele reconheceu o direito de casais homoafetivos se casarem no civil. Já foi um grande passo”, recorda.
Na época, registra, o pastor Silas Malafaia “veio a público dizer que iria ‘arregaçar’ com este Papa. Foi este o termo usado por ele. ‘Arregaçar’! Eu até escrevi um texto dizendo, por mais Franciscos no mundo e menos Malafaias”.
A indisposição de Fernandes com pastores que denomina “mensageiros da Satanás” não é de hoje.
Em junho passado, uma pregação de Fernandes viralizou nas redes sociais após o religioso defender as pessoas LGBTQIA+ e chamar os pastores André Valadão e Silas Malafaia de “mensageiros de satanás” por eles estarem destilando discursos de ódio que incentivavam a violência contra essa população.
“Oro para que Deus levante em nossos dias mais gente do quilate de Francisco e Júlio Lancellotti, não para reverter o êxodo de fiéis para a igreja evangélica, mas para nos conduzir a todos no Êxodo rumo à Terra Prometida por Deus e sonhada por poetas e profetas”, entusiasma-se o pastor.
Ele enumera outros nomes que considera revolucionários. “Sorte a nossa ainda termos entre nós, evangélicos, figuras como Caio Fábio, Ricardo Gondim, Ed Rene Kivitz, entre outros. Nem tudo está perdido do lado de cá, nem do lado de lá”, conclui Fernandes.